Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia
Título do artigo: Centralidades e periferias em sociologia da educação
Autor: José Augusto Palhares
Filiação institucional: Instituto de Educação da Universidade do Minho
E-mail: jpalhares@ie.uminho.pt
Palavras-chave: Sociologia da educação, educação formal e não-formal
Um olhar à superfície sobre os inúmeros manuais ou coletâneas produzidos no campo da sociologia da educação revela-nos uma atenção privilegiada sobre o sistema educativo, sobre a escola e sobre os principais atores que compõem o quotidiano escolar. Dir-se-ia que os sociólogos e demais cientistas sociais e da educação tendem a reproduzir as agendas investigativas clássicas e a conotar a educação com os fenómenos adstritos à esfera da instituição escolar. Porém, o cânone sociológico desde há muito nos convida a imergir para além da superfície e, sob esse impulso, não raramente encontramos contributos de inegável espessura reflexiva e empírica, cuja leitura atenta dos textos nos implica na problematização dos contextos e dos sentidos inerentes à ação educativa. Mesmo desenvolvendo enfoques centrados na escola, as investigações sociológicas das últimas cinco décadas revelaram o quão difícil é compreender o “escolar” apenas pelas suas variáveis restritas, sendo por isso necessário invocar “ferramentas” teórico-conceptuais mais amplas e cruzá-las com objetos e/ou áreas de interface. Esta constatação foi assumida como uma espécie de inevitabilidade sociológica, não obstante a hegemonia do “escolar” permanecer quase inabalável ao nível da investigação e dos estudos produzidos. Ainda assim, a necessidade de abertura do campo da sociologia da educação (Afonso, 1992), para dar conta de outros contextos e processos de aprendizagem e de socialização que se desenvolvem fora do marco institucional escolar, foi encontrando, paulatinamente, condições de afirmação, em grande medida resultantes da conjugação de múltiplos fatores, entre os quais: a “crise” da escola e o consequente alargamento desta a novos espaços e tempos educativos; a naturalização do projeto da “educação integral”; a proliferação de periferias educativas, alicerçadas em lógicas de complementaridade e/ou suplementaridade do currículo escolar; o surgimento de instituições de acolhimento e guarda de crianças e jovens, decorrente das transformações da família e dos seus papéis sociais; a disseminação da ideologia da aprendizagem ao longo da vida; a massificação das tecnologias da informação e da comunicação e a imaterialidade de novos sítios de aprendizagem e de socialização (Palhares, 2008); a adoção da ideia da “cidade educativa” e implementação de serviços educativos em instituições culturais e patrimoniais; o reconhecimento e valorização dos saberes experienciais de adultos; as aprendizagens informais como dispositivo de formação em contextos de trabalho; entre outros fatores aduzíveis às possibilidades de expansão da sociologia da educação a outros domínios das interações sociais.
Está ainda por estudar a natureza das relações que se estabeleceram, nas últimas décadas, em Portugal, entre os campos das ciências sociais e das ciências da educação e até que ponto se caminhou (ou não) para uma convergência de interesses, ainda que de forma desconcertada, refletida no aprofundamento de linhas de análise sociológica dos fenómenos educativos e na multiplicação dos “olhares” holísticos e, consequentemente, mais heurísticos sobre a educação. Não obstante esta refocalização se ter materializado em mais estudos, atores e espaços-tempos de interconhecimento, contudo, assistiu-se à adoção e reutilização de categorias analíticas sem que se cuidasse de saber o seu sentido original e sem que se procurasse ultrapassar as suas limitações no plano teórico e conceptual. São disto exemplo as categorias que enformaram a designada perspetiva integrada da educação, mais especificamente a educação formal, a educação não-formal e a educação informal.
Oriundas dos setores da planificação da educação, da UNESCO, estas categorias incrustaram-se no léxico educativo a partir de finais dos anos 60 do século passado, tiveram o seu apogeu na primeira metade dos anos 1980 e desde então tornaram-se residuais do ponto investigativo. Convém deixar claro que a novidade trazida por estas categorias situava-se mais no seu batismo do que propriamente na invenção dos fenómenos, como muitos autores tiveram oportunidade de esclarecer na altura. Mesmo admitindo-se o invés, a sua génese ficou indelevelmente associada a uma diagnosticada crise mundial da educação (Coombs, 1968), sobretudo no que respeitava à educação escolar, como uma espécie de insight face a um certo desânimo em relação ao poder salvífico da escola, pois não se tinha repercutido em mais democratização, mais desenvolvimento socioeconómico e, eventualmente, mais liberdade. A educação não-formal surgia para dar conta de um rol de atividades situadas fora do marco institucional da escola, isto é, nas palavras de Paulston (1972), na “periferia” dos sistemas educativos, assumindo funções ora de complemento, ora de suplemento, ora de alternativa. Desde cedo foi vista como alternativa à escolarização, em contextos desfavorecidos e nos países rotulados de subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento, como uma solução supostamente menos onerosa e mais eficaz em termos de aprendizagens. Não tendo resultado nestes propósitos, a curiosidade reside na rejeição que muitos países, recém emancipados, fizeram deste tipo de educação, ao conotá-la com uma educação de segunda. O que é certo, basta atualizar a pesquisa na internet sob os descritores “nonfomal” ou “non-formal” ou “non formal education” e os resultados remetem-nos maioritariamente para situações, contextos e sujeitos marcados por algum tipo de handicap social cultural e económico, em zonas geográficas também elas distantes do centro do “sistema-mundo”. Não deixa de ser irónico, que os anos 2000 tenham recuperado a educação não-formal como uma passarela para a empregabilidade, sendo implícitas as funções de complemento (e por que não dizê-lo, suplemento) à educação escolar. Mas convém acrescentar: as categorias foram substantivamente alteradas, pois em lugar da “educação” surge agora o termo “aprendizagem”, tal como reflete, por exemplo, o Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, da Comissão das Comunidades Europeias, em 2000, onde o termo não-formal aparece dezassete vezes associado à aprendizagem e só duas à educação. E esta tendência, que não corresponde apenas a uma alteração semântica, tem-se vindo a cristalizar oficialmente e, com alguma perplexidade, nos domínios do conhecimento sociológico e educativo. Falta, pois, em nosso entender, um debate mais profícuo em torno desta noção (e da educação informal), uma démarche que inclua a compreensão da sua historicidade e as transformações que entretanto se foram operando no mundo da educação. Algo como alguns autores vêm tentando (La Belle, 1982; Rogers, 2004) e que passa, tão-simplesmente, por introduzir reflexividade e imaginação sociológica na análise dos fenómenos educativos.
Referências:
Afonso, Almerindo J. (1992). Sociologia da educação não-escolar: reactualizar um objecto ou construir uma nova problemática? In A. J. Esteves & S. Stoer (orgs.), A sociologia na escola (pp.81-96). Porto: Afrontamento.
Coombs, Philip H. (1968). La crise mondiale de l’éducation. Analyse de systèmes. Paris: PUF.
La Belle, Thomas J. (1982). Formal, nonformal and informal education: a holistic perspective on lifelong learning. International Review of Education, XXVIII (2), 158-175.
Palhares, José Augusto (2008). Os sítios de educação e socialização juvenis. Experiências e representações num contexto não-escolar. Educação, Sociedade & Culturas, 27, 109-130.
Paulston, Rolland G. (ed.) (1972). Non-formal education. An annotated international bibliography. New York/Washington/London: Praeger Publishers.
Rogers, Alan (2004). Non-formal education. Flexible schooling or participatory education? Hong Kong: The University of Hong Kong/Kluwer Academic Publishers.