Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: A pecuária globalizante: processos, práticas, impactos ambientais e mitos
Autor: Rui Pedro Fonseca
Filiação institucional: Facultad Bellas Artes Universidad Pais Vasco / Instituto de Sociologia Faculdade de Letras Universidade do Porto
E-mail: fonsecarppd@hotmail.com
Palavras-chave: pecuária, ambiente, globalização
As economias globalizadas vêm adoptando métodos de produção cada vez mais intensivos de animais para abate, o que tem tido repercussões directas nas práticas de consumo e nas distintas dimensões de impactos: na saúde humana; em animais não humanos; na gestão de recursos naturais (solo, energia, água, alimentos, etc.) assim como no ambiente. Os modelos de criação industrial, ou “factory farming”, têm originado, no que respeita à distribuição, uma oferta cada vez mais massiva de produtos de origem animal. A produção nacional vem acompanhando o crescimento substancial dos países mais ricos que em conjunto, em 1961, produziram 71 milhões de toneladas e chegaram, em 2007, às 275 milhões de toneladas. Prevê-se que em 2050, a produção de animais não-humanos sencientes para abate duplique, superando as 465 milhões de toneladas.
Tal como acontece com os países mais desenvolvidos, o INE confirma que Portugal apresenta um aumento no consumo proteínas de origem animal, em detrimento de frutos, legumes e leguminosas. Entre 2005 e 2010, “carne”, “peixe”, ovos, óleos e gorduras registaram um consumo excedentário em 11 % para além “do recomendado”. Ao longo de cinco anos em análise, o consumo de “carne” aumentou cerca de 7%, a uma taxa média anual de 1,1%, tendência que começou a verificar-se a partir de 1990 [1].
Devido à contínua entrada de cadeias de restauração internacionais, os padrões nacionais de consumo estão em contínua modificação, passando a ter impactos não só em internamente, mas também além-fronteiras. Internamente, um desses impactos surge em plena época de crise económica: a Burger King gerou em 2008, 12 milhões de euros, uma subida de 34,9%, ao passo que a KFC lucrou seis milhões (+2%) [2]. A maior cadeia de restaurantes de fast–food do mundo – McDonalds – divulgou um aumento dos lucros da empresa em 10% no terceiro trimestre de 2010, tendo lucrado 1,39 mil milhões de dólares [3].
A adesão nacional a este tipo de produtos consubstancia práticas de cumplicidade que têm, inevitavelmente, impactos de degradação ambiental no estrangeiro tal como sucede, por exemplo, no Brasil. As supracitadas multinacionais, mas também a Cargill ou a JBS Friboi, são responsáveis por crimes ambientais tais como a desflorestação da Amazónia ou a poluição de lençóis freáticos. No entanto, os lucros destas multinacionais têm compensado os prejuízos do pagamento de algumas das multas impostas pelo governo brasileiro em relação aos diversos crimes ambientais cometidos. Outras catástrofes ambientais também sucedem, em diferentes escalas: no Rio Tiaodeng (China), ou nos Rios da Carolina do Norte (EUA) mas também em Portugal, na Ribeira dos Milagres (concelho de Leiria). No exemplo português, a produção excessiva de suínos vem apresentando impactos ambientais severos, devido ao lançamento de grandes quantidades de dejectos para as águas o que origina a extinção da vida aquática e a degradação para a vida das populações circundantes que se queixam da “espuma abundante” e do “cheiro característico das suiniculturas” [4]. No caso da Ribeira dos Milagres, as descargas de dejectos para as águas não têm qualquer tipo de punição para os responsáveis. A Comissão Ambiente e Defesa da Ribeira dos Milagres assegura que há “interesses económicos por detrás” desta impunidade [5].
O relatório das Nações Unidas “Livestock´s Long Shadow – Environmental Issues and Options” (2006), aponta a indústria da pecuária como um dos maiores responsáveis pela degradação ambiental, nomeadamente pela poluição da água, degradação dos solos e perda de biodiversidade [6]. O documento mostra que o “sector da agropecuária emerge como um dos dois ou três maiores contribuidores de problemas ambientais sérios, às escalas local e global” [6]; e que emite de “18% de gases poluentes”, taxa ainda mais elevada que o sector dos transportes [6].
Também em Portugal, os interesses e as estratégias económicas ergueram e dão consistência a um sistema de mitos em torno do consumo “imprescindível” da “carne”, reforçando uma cultura especista, auto-legitimadora. Adicionalmente, as muralhas institucionais são impeditivas para que os/as consumidores/as acedam aos processos e às técnicas industriais de exploração de animais para abate assim como aos impactos, cada vez mais estudados e documentados, que seriam suficientemente pertinentes para serem noticiados como manchetes mediáticas nos denominados meios de comunicação de “referência”. Contudo, este tipo de factos pouco, ou nada, são divulgados à opinião pública. Como poderia o bloco noticioso do Estado Português, o Telejornal do Canal 1, dar a conhecer às famílias portuguesas os nefastos impactos ambientais provocados na Amazónia quando os serviços (e falsos sistemas de crenças) e.g., da McDonalds, são publicitados quase diariamente no intervalo do próprio bloco noticioso? Por mais pertinente/urgente seja a divulgação deste tipo de informações às populações, a acessibilidade à informação por parte das audiências tem limites: as informações que contradigam a fictícia sacralidade projectada pelos patrocinadores não são válidas, e a sua omissão consente a continuidade de patrocínios das empresas, e a venda de audiências permite que as cadeias noticiosas mantenham as posições dos actores integrados. Trata-se de uma não verbalizada, mas manifesta, troca de privilégios que assegura um eficiente sistema de produção hegemónica de ideologias de consumo, em que os animais não humanos surgem representados como coniventes com a instrumentalização e sofrimento que padecem sob cenários campestres idílicos em que Natureza inspira a uma saúde gratificante. Num perfeito sistema de omissão, subvertem-se as realidades, enviesa-se a percepção visual e consolidam-se práticas, mitos e sistemas de valores. Quanto às distintas dimensões de impactos da agro-pecuária, são realidades antagónicas ao “gosto” dos/as consumidores/as e há estímulos que convém que permaneçam bem soterrados nas masmorras de algumas partes do planeta, para o bem da economia (de alguns).
Notas
[1] Cf. Portugueses optam por dietas cada vez mais calóricas; Base de Dados de Qualidade e Segurança Alimentar 13 de Dezembro de 2010.
[2] Restaurantes trocados por fast-food by João Paulo Madeira; Jornal de Noticias, 20 de Novembro de 2008.
[3] McDonald’s aumenta lucros em 10% no terceiro trimestre by Pedro Carreira Garcia; Negócios Online, 21 de Novembro de 2010.
[4] Comissão denuncia nova descarga poluente para a ribeira dos Milagres Ecoesfera, Publico, 21de Abril de 2010 – Lusa.
[5] Cf. Rui Crespo, in Nova Descarga na Ribeira dos Milagres, Região de Leiria, Março de 2011.
[6] Cf. Livestock´s Long Shadow – Environmental Issues and Options, 2006; United Nations; p. 408.