Criminosos não são os presos

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Criminosos não são os presos

Autor: António Pedro Dores

Filiação institucional: Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Lisboa, Portugal

E-mail: Antonio.Dores@iscte.pt

Página pessoal: http://iscte.pt/~apad/novosite2007

Palavras-chave: presos e criminosos, método científico, estigma.

Parece herético, mas não há outra forma mais clara de o dizer e de denunciar abusos metodológicos infelizmente vulgares em ciências sociais.

Se os presos fossem os criminosos, sobre que casos trabalhariam os tribunais? E porque razão os presos, uma vez terminada a pena e soltos, perderiam a categoria de criminosos? Não deveriam ver reforçado esse estigma, já que a reincidência é um fenómeno social estabelecido e indica um aumento exponencial de probabilidades de alguém que foi preso alguma vez voltar a ser preso? Tal fenómeno não coloca em causa directamente o valor do trabalho social de reinserção dos condenados?

Nas prisões há constantes entradas e saídas. Elas dependem da acção das polícias e dos tribunais e – sabe-se ser assim – não tem relação com o crime, cf. por exemplo, Jock Young. Isto é, conforme os países e as conjunturas, assim as leis, o ambiente social, a disposição dos polícias e dos juízes, as políticas dos executivos, há mais repressão criminal ou menos. As séries estatísticas mostram, em toda a parte, ser impossível encontrar alguma relação entre os crimes e as punições com pena de prisão. São curvas autónomas entre si.

Só parece estranho porque o senso comum faz destes saberes segredos sociais. Porque razão, todavia, os cientistas e investigadores sociais não assumem as consequências desta sabedoria básica e preferem acompanhar o senso comum nos segredos, em vez de fazerem luz? Que moralidade legitima a ciência a reforçar estigmas (contra os alvos dos processos de criminalização) e os poderes (instalados no momento) que deles se alimentam, desgastando o prestígio e o valor do que é científico, que deveria ser independente das circunstâncias?

Detenhamo-nos um momento na população prisional. Em todas as épocas e em todos os países, independentemente da civilização, as prisões são lugares de morbilidade aumentada, de violência impune, de práticas ilícitas toleradas, de corrupção e degradação tanto dos presos como dos profissionais, cf. Philip Zimbardo [2]. Embora sob a tutela estreita das forças de segurança dos Estados, estes mesmos reconhecem haver perigos extraordinários de tortura praticada dentro das prisões, entendendo-se por tortura não a violência mas antes a violência de funcionários do Estado com a finalidade de obter resultados legais motivados pela imposição de dor física ou mental a pessoas sob custódia. Nisso se fundam os tratados internacionais contra a tortura em vigor, no centro das políticas internacionais dos direitos humanos, a que os estados signatários que ratificaram os procedimentos aí previstos incumprem com as respectivas obrigações, segundo reclamam as ONG´s do sector, como a Amnistia Internacional, a Associação de Prevenção d a Tortura, a Organização Mundial Contra a Tortura.

Só o facto dos jovens de sexo masculino que compõe a maioria da população prisional, novamente em qualquer canto do mundo, serem pobres, iletrados, indefesos, deslocados da zona habitual de residência das suas famílias (como os imigrantes, cf. Salvatore Palidda e José Ángel Brandariz Garcia [3]) e sobretudo socialmente isolados – tantos deles crianças e jovens em risco sem qualquer solidariedade social útil, frequentemente abusados, cf. António Pedro Dores [4] – acusados de bagatelas judiciais, como se diz na gíria, e os filhos de famílias mais coesas praticamente não serem afectadas pelo fenómeno da criminalização, deveria fazer parar os cientistas sociais de ajudar a enxovalhar aqueles que por má sorte, digamos assim, tem vidas mais duras.

Porque é que os alegados causadores dos fenómenos criminais são sobretudo jovens urbanos pobres do sexo masculino? Esta é uma pergunta ignorada pelas ciências sociais. Todavia trata-se de um fenómeno universal e cuja falta de explicação consensual compromete o valor e a competência da teoria social no seu todo. O salto por cima que equipara os presos aos criminosos põe em causa a deontologia dos investigadores que trabalham com base em pressuposto tão evidentemente enviesado e falso.

Claro que haverá dentro das prisões gente que incumpriu com as normas legalmente vigentes. Mas como em todos os espaços sociais e institucionais, também na prisão quem viola a lei nem sempre (pode mesmo dizer-se raramente) é punido. Quem torture, por exemplo, raramente é punido, reclamam as ONGs citadas acima. Quem trafique mercadorias ilícitas também raramente é punido, até porque – como dizem as autoridades prisionais – é impensável deixar de fornecer estupefaciente de forma ilícita aos prisioneiros sob risco de as respectivas ressacas tornarem a ordem na prisão impossível – ainda assim, para reforço, a maior das despesas prisionais é em psicotrópicos para manter os presos dormentes, como zombies.

Fora das prisões é semelhante, como o mostram as cifras negras calculadas comparando os crimes denunciados à polícia e os crimes denunciados aos inquéritos de vitimação. O fosso aumenta muito se se comparar os crimes sentidos pelas pessoas inquiridas e as condenações efectivas, que são uma percentagem mínima das denúncias que chegam às polícias. As despesas dos crimes são, efectivamente, assumidas pela sociedade, ou melhor, pelos grupos sociais mais desfavorecidos de onde saem e para onde voltam a generalidade dos presos, com ostracismo do Estado e da sociedade no seu todo, um e outra sedentos de satisfazer viscerais angústias vingativas que, como seres modernos e civilizados, perversamente preferimos ocultar de nós próprios, responsabilizando bodes expiatórios, como é próprio da espécie humana, cf. René Girard [5].

Como explicam Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá [6], nas práticas institucionais actuais ele há crimes (económicos) que não são puníveis criminalmente, há crimes (cometidos por populares) que são objecto de perseguição carcerária e há crimes que nem precisam de vir nos códigos penais para serem perseguidos, quando se trata de “inimigos”, como é o caso Assange para o Procurador-geral dos EUA. O ponto de vista sociológico não pode nem deve manter-se securitário. Dava mesmo jeito que denunciasse a ideologia que suscita a vontade popular de trocar liberdade por segurança, em vez do contrário.

Notas

[1] Young, Jock (1999), Exclusive Society: Social Exclusion, Crime and Difference in Late Modernity, London: Sage Publications

[2] Zimbardo, Philip (2007), Lucifer Effect: Understanding How Good People Turn Evil, New York:  Random House.

[3] Palidda, Salvatore; Garcia, José Ángel Brandariz (dir.) (2010), Criminalización racista de los migrantes en Europa, Granada: Editorial Comares.

[4] Dores, António Pedro (2009), Human Rights through national borders, Sociology Without Borders, (4), pp. 383-397.

[5] Girard, René (1978), Des Choses Cachées Depuis la Fondation du Monde, Paris: Éditions Grasser et Fasquelle.

[6] Jakobs, Günther; Meliá, Manuel Cancio (2003), Derecho Penal del Enemigo, Madrid: Cuadernos Civitas.

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