O consumidor: um ser multifacetado

Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: O consumidor: um ser multifacetado

Autora: Isabel Silva Cruz

Filiação Institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: imsilvacruz@gmail.com

Palavras-chave: Consumidor, Escolha Racional, Necessidades e Desejos.

Nas sociedades actuais, também designadas sociedades do consumo, e no actual contexto de crise económica, social, politica e ambiental em que vivemos, o consumidor ganha centralidade. Vulgarmente, este surge representado, quer como ser racional dotado de competências que presidem às suas escolhas, quer como um ser emocional e vulnerável às influências da publicidade. Esta dupla faceta encontra-se, ainda, associada a variáveis que são referidas como condicionantes das práticas de consumo, como o género, a idade, o nível de instrução, o rendimento, a classe social, entre outras. É com base nestes atributos que se criam, definem e se difundem estereótipos que caracterizam diferentes tipos de consumidores.

Na verdade esta ideia generalizada do consumidor e dos seus estereótipos encontra fundamento em algumas conceptualizações. De facto, durante muito tempo, as teorias do consumo estiveram confinadas a uma abordagem microeconómica centrada nos processos de decisão individuais ou sobre a análise das estruturas de consumo em função de variáveis como o poder de compra, o rendimento ou a pertença social. Nesta perspectiva, o processo de decisão individual é conceptualizado como uma escolha racional baseada na capacidade do indivíduo para hierarquizar as suas preferências, para avaliar as ofertas e para optimizar a sua satisfação em função de recursos limitados.

Importa, também, referir que a economia, ao centrar a sua análise nos conceitos de necessidade e de utilidade, não integrou o desejo. Este corresponde ao principal motor do consumo. Considerar que os desejos são íntimos, singulares e distintivos constituiu a principal ilusão do indivíduo. Na realidade, os desejos são flutuantes e polarizam-se em torno de objectos evidenciados por outros indivíduos.

A centralidade da racionalidade, característica da teoria do consumidor, é questionada e outras dimensões ganham relevo na análise das práticas de consumo, designadamente a dimensão cultural e económica (Douglas e Isherwood, 2004) [1]. Assim, o consumo é tanto uma questão de preço, de troca e de relação económica quanto de sentido, de valor e de comunicação. Para além do consumo físico dos bens (utilidade e satisfação), estes constituem marcadores sociais no interior de um sistema de informação. Consequentemente, o consumo é um sistema de trocas que posiciona os indivíduos através do status e de papéis codificados.

Ao longo dos tempos, as práticas de consumo foram-se afastando cada vez mais da mera destruição do objecto para a satisfação de uma necessidade básica. Elas diversificaram-se, tornaram-se mais complexas e impregnadas de sentidos e de valores que se reportam a desejos, a sonhos e às necessidades relativas à compreensão, à realização pessoal e à transcendência. Assim, elas constituem práticas significativas e identitárias a partir das quais os indivíduos produzem significado e se definem. Esta mudança é paralela a fenómenos históricos e a mudanças ao nível da dimensão cultural da sociedade, em particular ao aumento do nível de escolaridade da população, a novas formas de lazer, à expansão da ideologia individualista, aos valores e à ética hedonista e consumista. O consumo hedonista caracteriza-se pela sobreposição dos desejos emocionais às motivações utilitárias e pela projecção de um significado subjectivo nos objectos que ultrapassa os seus atributos reais. De referir, ainda, que os valores práticos, ergonómicos (tempo e conforto), se opõem aos valores hedonistas e lúdicos (diversão, aventura), e que os valores consumistas ou críticos, centrados na optimização da relação qualidade / preço, da segurança, se opõem aos valores utópicos, dominados pelo sonho e pela evasão.

Na sociedade de consumo a estimulação substitui a coerção, a sedução sobrepõe-se aos padrões de conduta obrigatória e o advento de novos desejos e necessidades escapa à regulação normativa. Neste contexto emerge a noção de consumo experimental que postula por um lado uma disjunção entre o acto de compra, stricto sensu, e as práticas de consumo e, por outro lado, enfatiza as motivações não racionais na análise das mesmas.

Para compreendermos os comportamentos do consumidor é necessário atender aos constrangimentos estruturais (instituições sociais, ordem económica, política, cultural, entre outras), às relações de condicionamento decorrentes das variáveis socioeconómicas (género, idade, nível de instrução, rendimento, etc.) e aos contextos de socialização e de interacção (familiar, escolar, laboral, esfera amical e de lazer). Nesta perspectiva, o consumidor é perspectivado como multideterminado, multifacetado em função da diversidade de contextos em que é socializado e em que se relaciona com os outros, com si-mesmo e com o mundo que o rodeia (objectos materiais e não materiais). Importa, também, considerar as culturas subjectivas, os estilos de vida, os projectos, as escolhas, os desejos e a capacidade criativa dos indivíduos. Em suma, toda a subjectividade que caracteriza a sociedade de consumo.

Finalmente, é imperioso admitir que os consumidores são seres reais, dotados de uma história, de afectos, de desejos, de constrangimentos económicos, temporais, etc. E considerar, ainda, a possibilidade de opor à passividade do consumidor “um modo próprio de caminhar através da floresta de produtos impostos” (Heilbrunn, 2005:113) [2], que traduz a convicção numa criatividade escondida e na capacidade de cada consumidor inventar um novo sentido.

Notas

[1] Douglas, M.; Isherwood, B. (2004), O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.

[2] Heilbrunn, B. (2005), La Consommation et ses Sociologies, Collection Sociologie, 128, Paris : Armand Colin.

 

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