A pessoa com deficiência como o ‘Outro’

Dimensão analítica: Desporto

Título do artigo: A pessoa com deficiência como o ‘Outro’

Autora: Ana Luísa Pereira

Filiação Institucional: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto; Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: analp@fade.up.pt

Palavras-chave: Pessoa com deficiência; ‘Outro’; Participação desportiva.

O objectivo deste artigo é reflectir sobre a participação desportiva da pessoa com deficiência. A deficiência é, predominantemente, uma construção social. De facto, muitas deficiências são causadas pela estrutura física e social das sociedades, nomeadamente pelas condições sociais que causam ou falham na prevenção de danos corporais; pelas elevadas expectativas de performance; pela organização física e social das sociedades com base no paradigma do(a) cidadão(ã) jovem, sem incapacidade, com ‘forma ideal’, adulto(a) saudável; pelas representações culturais, equívocos de representação e expectativas, etc. [1].

As definições de deficiência remetem frequentemente para a ideia de que existe um padrão universal para as capacidades e estruturas humanas a nível biológico, funcional e físico. Porém, aquelas que são as capacidades normais nas sociedades urbanas ocidentais poderão não ser normais nem adequadas em sociedades rurais, ou ainda, uma pessoa pode ser considerada como tendo deficiência num país e noutro não ser. Ou seja, o que é reconhecido como deficiência varia através dos contextos culturais, reiterando a não universalidade desta palavra. Adicionalmente, são várias as culturas que não dispõem desta ou outra qualquer palavra para identificar Deficiência.

Na construção social da deficiência, resgata-se o conceito do ‘Outro’ para questionar quem tem poder de classificar a deficiência e as repercussões dessa classificação. É necessário reconhecer que a definição de deficiência envolve relações de poder, pois os indivíduos usam o ‘outro’ para a sua auto-definição.

Relembre-se o texto The second sex, onde Simone de Bouvoir refere que a expressão ‘outro’ é útil para conceptualizar a posição da mulher na cultura. Para Beauvoir, o homem constrói-se a si mesmo em oposição à mulher, a qual desempenha o papel do ‘Outro’ no processo identitário. Esta analogia foi feita por vários autores para se reportarem à relação de poder entre as pessoas sem e com deficiência.

No processo de ‘criação’ do ‘outro’, grupos de pessoas são empurrados para as margens da valorização social por se constituírem ameaças à ordem social e um desafio à integridade da comunidade. A medicina, juntamente com os valores da burguesia da modernidade, foi fundamental na ‘criação’ do ‘Outro’, pois o projecto da modernidade não concebia a co-existência com ‘estranhos’: seria a co-existência com a desordem, com o erro e com o defeito [2]. De facto, a modernidade representa as técnicas de correcção e auto-correcção, bem teorizadas por Foucault, sendo evidente que a modernidade teve dificuldade em incorporar a incapacidade.

Os significados simbólicos que as deficiências (e doenças graves ou incuráveis) têm são produtos e contributos para tornar as pessoas como o ‘Outro’, podendo encontrar-se três significados simbólicos: i) nas sociedades onde a ciência ocidental e a medicina são poderosas culturalmente, e onde existência da promessa de controlar a natureza persiste, as pessoas com deficiência lembram os falhanços dessa promessa e a incapacidade da ciência e da medicina em proteger da doença, deficiência e morte. Elas são o ‘Outro’ que a ciência quer esquecer; ii) nas sociedades onde existem fortes ideais de perfeição corporal, as pessoas com deficiência são o ‘Outro’ imperfeito que nunca chegarão a esses ideais; iii) algumas pessoas com deficiência, ‘heróis deficientes’, simbolizam o controlo heróico contra todos os obstáculos e as suas imagens públicas confortam as pessoas sem deficiência ao reafirmar a possibilidade de ultrapassar o corpo. A imagem de ‘herói deficiente’ pode reduzir a ideia do ‘Outro’ para algumas pessoas com deficiência, mas porque cria um ideal que a maioria das pessoas com deficiência não consegue alcançar, aumenta a ideia do ‘Outro’. Adicionalmente, tende a manter as pessoas com deficiência invisíveis, pois a sua experiência não é integrada na cultura [3].

Além desta invisibilidade, ainda se encontram barreiras à participação em diversos campos da vida social, nomeadamente a existência de barreiras para a participação no desporto, por exemplo, a falta de: programas organizados, experiências informais anteriores no desporto, acesso a treinadores e programas de treino, acesso a estruturas desportivas; factores psicológicos e sociológicos limitativos, etc. [4].

Apesar destas barreiras, existem inúmeras práticas e praticantes. Ainda assim, muito dificilmente as pessoas com deficiência são tomadas a sério como atletas. Mesmo quando atingem resultados de elevada prestação desportiva, é frequente que adquiram um estatuto de modelo de acção, associado ao de herói. Não obstante, este estatuto de herói ainda assume uma representação social estereotipada. O Super herói, ou ‘Supercrip’, tende a simbolizar o controlo heróico contra todos os obstáculos e as suas imagens públicas confortam as pessoas sem deficiência ao reafirmar a possibilidade de ultrapassar o corpo.

O estereótipo de ‘Supercrip’, pela imagem popular, pode parecer uma imagem positiva, mas deturpa a construção cultural da deficiência, ao não abordar os obstáculos objectivos [5]. Este é, aliás, um dos estereótipos mais comuns nos media, nomeadamente nos media impressos portugueses [6]. Com efeito, os(as) atletas tendem a ser retratados(as) como ‘vítimas’ ou como pessoas ‘corajosas’ que ultrapassam a ‘dolorosa’ experiência que é a deficiência através do desporto. O pior deste estereótipo está no facto de enfatizar o esforço individual como uma forma de ultrapassar as barreiras sociais, como se ter uma deficiência fosse culpa das pessoas, tendo estas de se adaptar a uma sociedade construída para as pessoas sem deficiência. Continua, por isso, a promover-se a opressão das pessoas com deficiência, colocando-as no fundo da hierarquia definida socialmente, na qual é dado grande valor aos corpos sem deficiência, no fundo perpetuando o ‘Outro’.

Notas

[1] Wendell, S. (1996), The Rejected Body: Feminist Philosophical Reflections on Disability. New York: Routledge.

[2] Hughes, B. (2002). Bauman’s strangers: impairment and the invalidation of disabled people in modern and post-modern cultures. Disability & Society, 17(5), 571-584.

[3] Wendell, S.; Op. Cit

[4] DePauw, K., & Gavron, S. (2005), Disability sport (2nd ed.). Champaign, IL: Human Kinetics.

[5] Nelson, J. (1994). Broken Images: Portrayals of those with disabilities in American media. In J. Nelson (Ed.), The disabled, the media and the information age (pp. 5-9). Westport: Greenwood Press.

[6] Pereira, O., Monteiro, M., Silva, A., & Pereira, A. (2009). Portuguese Media portrayal of Paralympic Athletes. Paper presented at the 6th EASS Conference- European Association for Sociology of Sport.; Monteiro, M., Pereira, O., Silva, A., & Pereira, A. (2009). Social representations of Paralympic Athletes in the Portuguese Sport Newspapers: the terminology as possible translator of the stereotypy. Paper presented at the Media & Desporto.

 

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