Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: Cientistas ativistas e a emergência climática
Autora: Ana Delicado
Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
E-mail: ana.delicado@ics.ulisboa.pt
Palavras-chave: clima, ciência, protesto.
A crescente interseccionalidade dos movimentos ambientais, em particular em torno das alterações climáticas, assenta em novas alianças entre o protesto ambiental e as reivindicações de justiça social, alicerçadas no género, na racialização, na classe, nas teorias pós-coloniais e marxistas [1].
A colaboração entre ativistas ambientais e cientistas-ativistas talvez não seja tão nova, mas está a sofrer transformações interessantes. Desde o final da Segunda Guerra Mundial que existem associações científicas orientadas para a defesa do ambiente, preocupadas com o risco nuclear, a degradação ambiental ou a sustentabilidade. É o caso da Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos, do Boletim dos Cientistas Atómicos ou da União dos Cientistas Preocupados (Union of Concerned Scientists).
No entanto, os últimos anos têm-se caracterizado por um maior envolvimento dos cientistas nas questões ambientais, em particular quando a ciência que sustenta as previsões de desfechos catastróficos para o planeta é posta em causa. É disso exemplo a Marcha pela Ciência (inspirada pela Marcha Mundial do Clima em 2015 e pela Marcha das Mulheres em janeiro de 2017) que percorreu o mundo em abril de 2017 em mais de meio milhar de cidades, sob o lema “a ciência não é um facto alternativo” e em resposta às posições públicas do então presidente dos EUA Donald Trump, incluindo a retirada do Acordo de Paris [2]. Mas também a carta publicada na BioScience assinada por mais de 15.000 cientistas alertando para ameaças ambientais catastróficas, marcando o início da Aliança dos Cientistas do Mundo [3], ou o aparecimento da Scientist Rebellion, um ramo do movimento climático Extinction Rebellion [4].
Em Portugal, esta interseção entre academia e ambiente não é nova. Entre os fundadores e dirigentes das principais organizações não governamentais de ambiente (Liga para a Proteção da Natureza, Quercus, Geota, Zero), e mesmo de movimentos não formalizados (Climáximo), estão professores universitários e investigadores da Universidade Nova de Lisboa, Universidade de Coimbra, Universidade de Lisboa, Universidade do Porto, etc.
A 22 de abril de 2017 (Dia do Planeta) também decorreu em Lisboa a Marcha pela Ciência, juntando algumas centenas de cientistas, surpreendentemente incluindo figuras políticas, como o Ministro da Ciência e o Comissário Europeu da Investigação, Ciência e Inovação. Por entre slogans centrados no valor da ciência e reivindicações de natureza laboral, encontravam-se também alguns cartazes relativos à emergência climática (curiosamente sobretudo em inglês): “Oceans rise, so do we”, “There is no planet B”.
Figura 1 – Marcha pela Ciência em Lisboa
Fonte: a autora
Uma semana depois realizou-se a Marcha Mundial do Clima, também em Lisboa, organizada pela plataforma Salvar o Clima (que junta diversas organizações), evento que se repetiria com títulos variados em anos subsequentes: Marcha Mundial do Clima em 2018, Greve Climática Global em 2019, Mobilização Climática Global em 2020, Marcha Mundial pela Justiça Climática em 2021, Marcha Azul pelo Clima em 2022, Uma casa para viver/Um planeta para viver em 2023, Nós fazemos o futuro em 2024.
Nestas ações tem participado o grupo português da Scientist Rebellion, envergando batas de laboratório e empunhando uma faixa com o slogan “Ouçam a ciência: revolução climática já”. Criado nos primeiros anos da presente década, o Scientist Rebellion Portugal sustenta-se na noção que a desobediência civil dos cientistas é uma forma de pressionar os governos rumo à ação climática urgente necessária. Entre os seus “reportórios de contestação” [5] tem estado não só a presença em manifestações de rua, mas também ações de protesto contra jatos privados no aeródromo de Tires, a aquisição de infraestruturas de gás pela REN – Redes Energéticas Nacionais, os lucros da GALP, ou o julgamento de ativistas climáticos. Destacam-se também a participação na campanha Empregos para o Clima e no bloqueio do terminal de gás de Sines, a organização de conferências, encontros e assembleias populares, a redação de cartas abertas e guias de ação (incluindo propostas sobre como docentes e investigadores podem apoiar a ocupação por estudantes de instituições de ensino superior).
Muitas das ações são feitas em articulação com a rede internacional Scientist Rebellion: por exemplo, a campanha “A ciência é clara”, em maio de 2023, que em Portugal se materializou em ações contra a opção governamental pelo hidrogénio ou instituições bancárias que financiam a indústria dos combustíveis fósseis. Não chegando ao dramatismo dos congéneres espanhóis (que em abril de 2022 tingiram de sangue/tinta vermelha a fachada e as escadas do Congresso dos Deputados, ocasionando a prisão de vários cientistas), em dezembro de 2023 colocaram cartazes e vendaram os olhos a estátuas em Lisboa. Como todos os movimentos sociais contemporâneos, fazem um uso intenso das redes sociais e das ferramentas digitais (por exemplo, sessões de indução online regulares, para angariar novos membros, ou palestras online com especialistas internacionais).
Se há umas décadas se afirmava que as alterações climáticas eram invisíveis para os cidadãos e só a ciência detetava o problema, hoje em dia os seus efeitos já são por demais evidentes. No entanto, a severidade da crise parece permanecer mais óbvia e preocupante para os cientistas que para os políticos ou o público. É esse desfasamento que os investigadores procuram debelar ao se envolverem no protesto climático mais impactante. Está, porém, ainda por aferir o efeito transformativo deste movimento de cientistas ativistas na opinião pública e na decisão politica.
Notas:
[1] Mikulewicz, M., Caretta, M.A., Sultana, F. & Crawford, N.J.W. (2023). Intersectionality & Climate Justice: A Call for Synergy in Climate Change Scholarship. Environmental Politics, 32 (7), pp. 1275–86. doi:10.1080/09644016.2023.2172869.
[2] Brulle, R. J. (2018). Critical reflections on the march for science. Sociological Forum, 33 (1), pp. 255-258.
[3] Ripple, W.J., et al. (2017). World scientists’ warning to humanity: a second notice. BioScience, 67(12), pp. 1026-1028.
[4] Artico, D. et al. (2023). “Beyond being analysts of doom”: scientists on the frontlines of climate action. Frontiers in Sustainability, 4, 1155897.
[5] Della Porta, D. (2022). Repertoires of contention. In D. A. Snow, D. Della Porta, B. Klandermans & D. Mcadam (eds.), The Wiley-Blackwell Encyclopedia of Social and Political Movements. Oxford: Blackwell.
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