O teletrabalho e o “regime de dependência económica sem subordinação jurídica” (Parte II)

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: O teletrabalho e o “regime de dependência económica sem subordinação jurídica” (Parte II)

Autora: Ana Alves da Silva

Filiação institucional: CoLABOR – Laboratório Colaborativo para o trabalho, Emprego e a Proteção Social

E-mail: ana.alves.silva@colabor.pt

Palavras-chave: teletrabalho, dependência económica, subordinação jurídica.

Apesar de definir o teletrabalho como trabalho prestado em regime de subordinação jurídica, o novo regime do teletrabalho contempla a aplicação de cinco dos seus artigos ao trabalho prestado à distância que, apesar de economicamente dependente, não constitua uma relação de trabalho subordinado. Ao fazê-lo, algumas interrogações se interpõem: o que se entende, desde logo, por trabalho à distância? É um conceito cuja definição se sobrepõe à de teletrabalho, exclusivamente, e implica, portanto, o recurso a meios telemáticos e informáticos para a sua prestação e para o exercício dos poderes do tomador de trabalho? Em seguida, como definir, então, o que é objetivamente considerado como trabalho economicamente dependente sem subordinação jurídica? Terá o legislador em mente uma síntese do regime previsto para o trabalho no domicílio e da delimitação de graus de dependência económica a partir de 50% e 80% da totalidade de rendimento proveniente de um único tomador do trabalho, tal como estabelecido pela nova redação do Código dos Regimes Contributivos (CRCSPSS), prevista no Decreto-Lei n.º 2/2018, de 9 de janeiro? Se sim, e considerando os artigos do novo regime do teletrabalho que são aplicáveis “na parte compatível” [1] a tais situações – 168.º, 169.º-A, 169.º-B, 170.º e 170.º-A [2] – importa então indagar se pode o novo regime do teletrabalho trazer novas zonas cinzentas no plano concreto das situações de trabalho com graus variáveis de dependência económica e subordinação jurídica. E – finalmente, mas talvez o mais importante –, se essas potenciais novas zonas cinzentas constituirão espaços de maior proteção social dos trabalhadores ou, paradoxalmente, configurarão um estreitamento adicional da cobertura protetiva oferecida pelo Código do Trabalho (CT)?

A rota de construção de respostas a estas questões terá de partir da observação dos objetos do articulado extensível “na parte compatível” a este regime de trabalho à distância em situação de dependência sem subordinação jurídica. Da sua leitura sobressai que tal articulado se compõe, grosso modo, de aspetos de natureza organizativa da atividade laboral que configuram o que já vimos serem objetos constitutivos do conceito de subordinação jurídica. Regula, mais precisamente, (i) a disponibilização, utilização e custeamento de meios e equipamentos de trabalho e da sua manutenção (168.º); (ii) os métodos e práticas de exercício de poderes de direção, regulamentação e disciplinar do tomador do trabalho (169.º-A), bem como (iii) práticas efetivas de controlo direto por si exercidas, como as visitas ao local de trabalho (que pode ser o domicílio do prestador da atividade ou outro local entre ambos acordado) e o recurso a meios informáticos e telemáticos de controlo e supervisão (170.º); ainda (iv) alguns deveres especiais que versam sobre aspetos relativos a cada um dos anteriores, incluindo a observância estrita do horário de trabalho efetivada num novo “dever de abstenção de contacto”, para lá do horário acordado, por parte do tomador de trabalho; e, por fim, (v) aspetos relativos à segurança e saúde no trabalho.

Coloca-se, pois, o problema primeiro de saber quais as partes compatíveis deste articulado com formas de prestar trabalho que são, por definição, não subordinadas. Se o são – ou seja, se a sua aplicação versa sobre formas de trabalho independente – todos os objetos acima indicados exorbitam, à partida, a esfera de regulação (e proteção) dada pela noção jurídica de subordinação. Ao considerar-se um conjunto de partes compatíveis, a sua aplicação reconhece e legitima uma zona cinzenta em que as fronteiras da subordinação jurídica – reverso teórico-normativo do reconhecimento de poderes de direção, regulamentar e disciplinar de um empregador – se diluem. Não é mais somente a noção de dependência económica – atualmente uma só “parcela da subordinação jurídica” – que é revestida de imprecisão normativa, é o próprio conceito fundamental da noção moderna de contrato de trabalho que se esbate ante a normalização de formas efetivamente subordinadas de prestar trabalho exercidas sob contratos “de trabalho” que, do ponto de vista jurídico, afinal o não são.

Se a permeabilidade a este esbatimento da precisão normativa da noção de subordinação jurídica já é reconhecível na legislação do trabalho no domicílio – onde aqueles objetos são também regulados, apesar de não tão exaustivamente e com cambiantes assinaláveis apenas num artigo de outra dimensão –, importa, contudo, notar que esse mesmo regime não assegura ao prestador de trabalho abrangido a mesma cobertura de direitos laborais previstos para o trabalho subordinado, seja relativamente à retribuição, seja ao direito a férias pagas, à compensação por suspensão de atividade imputável ao tomador da atividade, ou aos termos e normas de cessação de contrato e correlatos direitos compensatórios [3]. Nem o faz, naturalmente, a nova redação do CRCSPSS ao objetivar o que se entende por trabalho independente dependente.

Se de facto a órbita da proteção conferida pela noção de subordinação jurídica é excedida (apesar de, contraditoriamente, não o ser em matéria de regulação da relação laboral concreta), por que razão, então, abrir a porta da hibridização dos estatutos sociolaborais a uma forma de prestar trabalho – o teletrabalho – que estava regulada como trabalho efetivamente subordinado, e que beneficiava, assim, de toda a proteção sociolaboral conferida pelo CT? Não está, outra vez, um intento de inclusão a promover o espaço excludente da parasubordinação?

Interrogações que, pela sua importância na proteção dos trabalhadores, não podem permanecer à margem do debate público. Mas indo ainda mais longe na indagação, importa considerar que as tecnologias digitais de comunicação impregnam atualmente quase todo e qualquer contexto de interação social – de que o contexto laboral não é exceção. Haverá então, concretamente, diferenciação substantiva entre este novo regime de trabalho à distância em situação de dependência económica sem (apenas formal) subordinação jurídica e o já regulado trabalho no domicílio?

Notas

[1] Alínea 2.º do Artigo 165.º da Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro.

[2] Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro.

[3] Não obstante na compensação por despesas relativas “a água, energia, comunicações, aquisição e manutenção de equipamentos” (Art.º 7.º da Lei n.º 101/2009, de 8 de setembro), o regime do trabalho no domicílio a contemple como retribuição do prestador de trabalho, numa norma objetivamente mais favorável ao trabalhador em matéria de proteção social.

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