Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: O teletrabalho e o “regime de dependência económica sem subordinação jurídica” (Parte I)
Autora: Ana Alves da Silva
Filiação institucional: CoLABOR – Laboratório Colaborativo para o trabalho, Emprego e a Proteção Social
E-mail: ana.alves.silva@colabor.pt
Palavras-chave: teletrabalho, dependência económica, subordinação jurídica.
Entrado em vigor no início deste novo ano, o regime jurídico do teletrabalho [1] vem levantando várias interrogações no debate público. Juristas, sindicatos e empregadores têm relevado aspetos de aplicabilidade imprecisa, como o apuramento e custeamento das despesas ou a gestão da intercalação do regime de teletrabalho por progenitores com diferentes empregadores. Nesse debate, abordam também a falta de densidade jurídica de alguns conceitos, seja pela inexatidão com que o texto mobiliza noções já estabelecidas no Código do Trabalho (CT) – como a de retribuição -, seja pela introdução de termos novos ao texto jurídico-laboral, que carecem de definição e poderão ser fonte de novas litigâncias.
Dentre estes, sobressai um que se adivinha fonte de problemático dissenso nas relações laborais e não tem merecido a devida atenção: o conceito de “dependência económica sem subordinação jurídica” e o respetivo regime. Carecemos dos recursos para discorrer sobre a longa história de estabilização do conceito de subordinação no texto jurídico – que veio, inclusivamente, a suplantar o de dependência económica na análise da ontogenia político-económica da relação de emprego -, mas não podemos deixar de, a traços largos, tentar compreender o que se pode entender, aos dias de hoje, por dependência económica sem subordinação jurídica, para interrogarmos, em seguida, potenciais contradições derivadas da extensão do novo regime do teletrabalho à multiplicidade de situações laborais concretas que tal “regime” tende a cobrir.
O que devemos, então, compreender por dependência económica sem subordinação jurídica? Numa análise da economia política do trabalho, a “verdade original” [2] da relação de emprego é de uma relação na qual uma das partes possui os meios necessários à reprodução material da outra. A esta, desapossada de meios, resta como alternativa vender a sua força de trabalho, dedicando-a a uma atividade produtiva detida pela primeira. Ora, na legislação laboral, que uma atividade produtiva seja “detida” por outrem significa que a desigualdade material que estrutura a noção de “dependência económica” se traduz numa relação politicamente desigual, sob a qual a parte possidente detém poderes de direção e regulamentação da atividade e, por conseguinte, de controlo e disciplina de quem a desempenha. Esses poderes estruturam, regra geral [3], a noção de subordinação jurídica que preside à definição de uma relação de emprego, discernindo o trabalho subordinado do autónomo e assim delimitando a fronteira de aplicação do próprio direito laboral.
Neste quadro, o trabalho dependente é estruturante da relação de trabalho subordinado, pelo que à dependência está associada a exclusividade (total ou tendencial) da relação económica – que se materializa na troca da prestação de trabalho por uma dada e periódica retribuição pecuniária (um salário) -, bem como a heterodeterminação de fatores de ordem organizativa da atividade produtiva – relativos ao local, horário e meios de trabalho e ao exercício parcial daqueles poderes (diretivo, regulamentar e disciplinar), delegados nas posições hierárquicas da estrutura socio-organizativa da atividade produtiva. Ao trabalho independente, por sua vez, associa-se uma noção de independência económica – a integração num mercado aberto pautado pela pluralidade de relações económicas e tomadores de trabalho (por oposição ao mercado “privativo” da relação exclusiva com um só tomador), sob as quais o poder de determinação dos aspetos de natureza socio-organizativa da atividade recaem – estes, sim, de forma tendencialmente exclusiva -, sob a alçada do prestador de trabalho: o trabalhador independente.
A delimitação destas duas relações típicas de trabalho é, todavia, cada vez mais esbatida por via de inovações cumulativas na configuração tecnológica e organizacional das empresas. Seja porque ao trabalho subordinado se concedem elevados níveis de autonomia organizativa, seja porque ao trabalho autónomo se estendem formas diversas de exercício de poderes típicos dos tomadores de trabalho, as novas formas de tomar e organizar o trabalho de outrem aprofundam e complexificam o espaço da parasubordinação, estendendo e diversificando a precarização sociolaboral ao exorbitar a esfera de proteção do Direito do Trabalho (DT).
É pelo crescente reconhecimento dessa exorbitância que a dependência económica sem subordinação jurídica já prevista no regime do trabalho no domicílio [4] não se mostra capaz de responder à pluralidade de situações experienciadas pelos trabalhadores independentes em dependência económica. Não obstante esse regime outorgue já um dado nível de subordinação organizativa num estatuto alegadamente não subordinado (limitando apenas parcialmente os poderes do tomador do trabalho sobre o prestador), ele deixa por definir o quantum de dependência económica necessária para a sua identificação no plano concreto das relações laborais. Foi a revisão do regime de proteção social dos independentes que se iniciara em 2010 que veio, mais recentemente – e para convocar a uma mínima responsabilidade contributiva os tomadores de trabalho -, estipular o que podem, objetivamente, considerar-se como níveis de dependência económica. Assim, numa situação de dependência encontra-se um trabalhador que, apesar de formalmente independente, tem rendimento anual total proveniente em pelo menos 50% de um único tomador do seu trabalho (considerando-se este, a partir deste limiar, como entidade contratante [5]), sendo esta dependência mais aguda caso essa proporção seja de 50% a 80% e tendencialmente exclusiva, diríamos, caso seja superior a 80% [6].
Uma tal gradação da dependência económica, pese embora benévola na extensão da cobertura de proteção social a situações laborais concretas dificilmente diferenciáveis do trabalho subordinado tout court, ancora-se, porém, numa noção não precisada no próprio CT, pelo que aprofunda o espaço da parasubordinação e contribui para a legitimação de formas de tomar trabalho que estão para lá da cobertura conferida pelo próprio direito laboral, reduzindo assim, e paradoxalmente ao seu intento, o alcance que este oferece na proteção dos trabalhadores.
É este tipo de contradição que se adivinha na aplicação do novo regime do teletrabalho “a todas as situações de trabalho à distância sem subordinação jurídica, mas em regime de dependência económica”, abordada na parte 2 deste texto.
Notas:
[1] Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro.
[2] Lordon. F.(2014). Willing Slaves of Capital. Londres: Verso.
[3] Pedersini, R.(2002). “Economically dependent workers’, employment law and industrial relations”. Eurofound.
[4] Lei n.º 101/2009, de 8 de setembro.
[5] Outro conceito inexistente no Código do Trabalho.
[6] Art.º 140 do CRCSPSS.
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