Mulheres no mercado de trabalho: por uma recuperação da crise com mais justiça e dignidade

Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública

Título do artigo: Mulheres no mercado de trabalho: por uma recuperação da crise com mais justiça e dignidade

Autora: Mariana Pereira

Filiação institucional: OIT – Lisboa

E-mail: pereiram@ilo.org

Palavras-chave: trabalho, desigualdades, género.

As crises são particularmente reveladoras porque expõem vulnerabilidades e assimetrias, exacerbando, em particular para certos grupos da população, desigualdades pré-existentes.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) tem chamado a atenção para o facto da crise pandémica que vivemos poder pôr em causa os importantes progressos alcançados na redução das desigualdades de género. Se, por um lado, o impacto no emprego se fez sentir com mais intensidade nas mulheres, pela sua forte predominância em setores muito afetados pelas restrições impostas pelos governos para conter a propagação do vírus – o emprego das mulheres contraiu 5% em 2020, enquanto o dos homens contraiu 3,9% no mesmo período [1] -, por outro, o trabalho não remunerado realizado pelas mulheres intensificou-se, uma vez que sobre elas recaíram esforços adicionais nos cuidados familiares, reforçando os tradicionais e assimétricos papéis de género. Mas, a nível global, as mulheres foram ainda desproporcionalmente afetadas pela sua forte exposição ao risco de contágio por constituírem a larga maioria da força de trabalho nos sectores da saúde e dos cuidados (70%).

Cerca de 90% das mulheres que perderam o emprego durante a crise tornaram-se inativas o que compara com 70% dos homens na mesma situação. Isto significa que, para além de uma maior incidência do desemprego, aumentou o número de mulheres desencorajadas ou que não estão disponíveis para voltar a ter um emprego remunerado, o que conduzirá a interrupções mais longas nas suas vidas de trabalho e maiores dificuldades em regressar ao mercado de trabalho se e quando o desejarem.

Em Portugal, uma análise rápida ao impacto da crise no mercado de trabalho, de 2020, dava conta de que existiu um impacto assimétrico na exposição dos trabalhadores à COVID-19 pela proporção de mulheres empregadas em atividades de ação social e de saúde humana – 90,3% e 78,7%, respetivamente [2].

A OIT prevê que o impacto desproporcional da pandemia sobre homens e mulheres continue a manifestar-se nos próximos anos de recuperação – o nível de emprego das mulheres em 2022 deve permanecer 1,8 p.p. abaixo do nível verificado em 2019 o que compara com o diferencial de 1,6 p.p. no caso dos homens, o que agrava as desigualdades pré-existentes em termos de participação no mercado de trabalho [3]. As mulheres jovens enfrentam dificuldades acrescidas na recuperação dos níveis de emprego face ao pré-crise [4].

A crise pandémica conduziu igualmente a uma expansão sem precedentes do teletrabalho que trouxe consigo desafios: jornadas de trabalho mais longas, momentos de pausa insuficientes, conflitos entre o trabalho e a vida familiar, entre outros. Para as mulheres, em particular mulheres com filhos, interrupções e dificuldades de concentração foram mais frequentes assim como maiores dificuldades em cumprir prazos e corresponder às expetativas dos empregadores [3].

O teletrabalho encerra o potencial de permitir conjugar trabalho remunerado com responsabilidades familiares, contudo, pode comportar maiores riscos de isolamento profissional e social, riscos de “invisibilidade” parcial, com menores oportunidades de interação, aprendizagem, cooperação e inovação, com consequências nos salários e na progressão na carreira. [5]. Os desafios de conciliação trabalho-vida familiar são especialmente exigentes para as mulheres portuguesas dado que, no contexto europeu, são das que mais trabalham, tendo filhos pequenos, e habitualmente a tempo completo [6].

O encerramento de escolas provocou ainda um crescimento acentuado do trabalho doméstico não pago o qual recaiu de forma desproporcional sobre as mulheres. Em Portugal, foram sobretudo as mulheres que abdicaram de trabalhar para ficar com os filhos quando as escolas encerraram, como demonstram os dados dos beneficiários do apoio excecional às famílias, medida de proteção social dirigida aos pais que precisaram de abdicar de trabalhar para cuidar de filhos menores de 12 anos, em virtude do fecho das escolas – as mães representaram 4 em cada 5 beneficiários desta medida [2]. Também o apoio com os trabalhos de casa dos filhos recaiu mais sobre as mães do que sobre os pais [7].

Mas a estes desafios acresce a questão salarial e as disparidades de género que persistem nesse domínio. Em termos globais e médios as mulheres tendem a auferir menos remuneração por trabalho de valor igual e a gozar de piores condições de trabalho. Estas desigualdades de remuneração no mercado de trabalho traduzem-se mais tarde em desigualdades de rendimentos na velhice, com o sistema de pensões a espelhar em grande medida as desigualdades salariais ao longo da vida ativa.

Em Portugal, apesar do perfil de emprego entre homens e mulheres se ter aproximado na última década – por exemplo ao nível da taxa de emprego, número de horas trabalhadas, níveis de qualificação – persistem diferenças salariais significativas entre homens e mulheres. A parte destas diferenças salariais “não explicada” por diferenças nas caraterísticas individuais é tanto maior no trabalho a tempo parcial e nos escalões de rendimento mais elevados [6].

A persistência de fortes assimetrias na distribuição de homens e mulheres por setores de atividade, que espelham a segregação de género nos percursos educativos e de especialização de raparigas e rapazes, permitem compreender, ainda que parcialmente, a componente “explicada” das diferenças salariais – os homens são predominantes em setores com ganhos médios superiores, enquanto as mulheres estão em setores com piores remunerações (Figura 1).

 Fig.MPereira

Figura 1 – Ganho médio mensal (€) e proporção de mulheres na população empregada por atividade económica (2017)

Fonte: Organização Internacional do Trabalho (2022) [6].

 

Num contexto de crescimento da procura de trabalhadores especializados em STEAM (Science, Technology, Engineering, the Arts and Mathematics), à boleia das novas dinâmicas do futuro do trabalho, torna-se cada vez mais premente procurar um maior equilíbrio na participação de raparigas e rapazes nos percursos de especialização emergentes, que muitas vezes estão associados a melhores condições salariais e de trabalho.

Por fim, importa referir que o diálogo social e a negociação coletiva são meios fundamentais para promover melhores salários e condições de trabalho para trabalhadores e trabalhadoras. Os desafios e dificuldades que afetam desproporcionalmente as mulheres são também agravados ou mantidos pela sua menor representatividade nestas estruturas [8].

Uma recuperação duradoura e equilibrada da atual crise, um futuro do trabalho com oportunidades equitativas para homens e mulheres, exige que nos debrucemos sobre as várias dimensões das desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho – os desafios antigos que persistem, aqueles que a crise ampliou, bem como os fatores que podemos desde já antever que possam comprometer um futuro do trabalho com justiça e dignidade.

Notas

[1] Organização Internacional do Trabalho (2021), ILO Monitor: COVID-19 and the world of work. Seventh edition, Disponível em URL [Consult. 4 Dez 2021]: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/documents/briefingnote/wcms_767028.pdf>

[2] Paes Mamede, Ricardo (coord.) (2021), Portugal: Uma análise rápida do impacto da COVID-19 na economia e no mercado de trabalho. Organização Internacional do Trabalho. Junho 2021. Disponível em URL <

https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/publication/wcms_754606.pdf>

[3] Organização Internacional do Trabalho (2022), World Employment and Social Outlook: Trends 2022, Disponível em URL [Consult. 20 Jan 2022]: < https://www.ilo.org/global/research/global-reports/weso/trends2022/WCMS_834081/lang–en/index.htm>.

[4] Organização Internacional do Trabalho (2021), ILO Monitor: COVID-19 and the world of work. Eighth edition, Disponível em URL [Consult. 4 Dez 2021]: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/documents/briefingnote/wcms_824092.pdf>

[5] Tomei, Manuela (2021), Teleworking: A Curse or a Blessing for Gender Equality and Work-Life Balance?, Intereconomics 56(5):260-264.

[6].Organização Internacional do Trabalho (2022). Estudo sobre a diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal. Disponível em URL:  < https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/publication/wcms_836143.pdf>

[7] Benavente, Ana et al. (2020). Impacto do Covid-19 no sistema de ensino português. Resultados parciais a 8 de abril 2020 – parte 3. Observatório de Políticas de Educação e Formação.

[8]. Resultados do 1º inquérito nacional sobre a representatividade das organizações sindicais e de empregadores. Universidade de Lisboa, ICS, FCTI. Dezembro de 2021.

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