Dimensão analítica: Economia, Trabalho e Governação Pública
Título do artigo: A transição energética: transição tecnológica ou transição social?
Autor/a: Ana Rita Antunes 1, Inês Campos 2, Guilherme Luz 1
Filiação institucional: 1 Coopérnico – Cooperativa de Desenvolvimento Sustentável; 2 Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
E-mail: arantunes@coopernico.org
Palavras-chave: energia, comunidades, transição.
Os objetivos de descarbonização da sociedade e da neutralidade carbónica implicam o aumento da produção de energia renovável. De forma geral, podemos identificar dois modelos para o desenvolvimento de novos sistemas de produção, consumo e gestão de energia renovável: o modelo centralizado e o modelo descentralizado.
O modelo centralizado, assente em grandes investimentos geralmente privados, com base em grandes centrais solares, eólicas, hídricas ou até de queima de biomassa, vem fundamentalmente substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis, mantendo as mesmas estruturas socioeconómicas de gestão tecnocrática e vertical, características da economia fóssil desde a revolução industrial. Este modelo mantém as estruturas de poder nas quais assentam os modelos de produção e consumo atuais, e onde a participação democrática dos cidadãos não tem lugar, preservando as desigualdades sociais existentes. O modelo de produção centralizado implica também uma exploração significativa de recursos ambientais, pois depende de grandes investimentos em centrais com potência instalada entre os 100MW e 1GW, que obrigam à ocupação de grandes áreas agrícolas e/ou de paisagens naturais.
Isto é justamente o que está a acontecer em Portugal onde novas grandes centrais fotovoltaicas projetadas implicam instalações de centenas de painéis solares, ainda que, findas as décadas de atividade destes sistemas, os terrenos possam ser novamente reabilitados para outros fins. Uma das características deste modelo centralizado é que, na maioria dos casos, estes projetos se desenvolvem sem real envolvimento da população.
Assim, o modelo centralizado aplicado é pouco democrático, pouco preocupado com um novo sistema sócio-energético mais inclusivo e igualitário, ambientalmente menos sustentável e, no que respeita à distribuição, menos eficiente, comparativamente aos pequenos e médios sistemas. Estes últimos são dimensionados e geridos em função dos consumos, permitindo que toda a energia produzida seja consumida ou partilhada localmente, com o mínimo de perdas.
É desta realidade que surgem diferenças fundamentais nos modelos de transição energética que se ambiciona ver florescer.
Estamos perante um ponto crucial de viragem na humanidade e temos a possibilidade de fazer diferente e melhor. Ainda que algumas centrais de energia renovável centralizada possam ser necessárias para garantir a descarbonização total do nosso sistema socio-energético, a priorização de grandes centrais solares fotovoltaicas, como se tem verificado em Portugal, irá criar novos problemas ecológicos e sociais, sem conseguir responder efetivamente aos desafios da descarbonização de uma transição justa. A transição energética sujeita a uma lógica unidimensional de redução de emissões, menosprezando dimensões sociais e políticas (processo transparente e poder de participação e decisão) originará graves problemas de aceitação para as comunidades afetadas pelos novos projetos de energia renovável centralizados.
Neste, as cooperativas europeias de energia renovável (RESCOOPs), acreditam que a transição energética deve contemplar com seriedade a combinação da satisfação das necessidades energéticas nacionais e locais com a preservação do uso do solo e dos ecossistemas e a necessidade de envolvimento dos cidadãos. Este processo de transição deve permitir uma verdadeira transformação social e conduzir-nos a uma sociedade mais inclusiva e ambientalmente mais sustentável.
Para caminhar em direção a uma transição energética democrática, a Coopérnico considera essencial que os consumidores se transformem em ‘prosumidores’ (para além de consumidores, sejam também produtores de energia) e, que de um ponto de vista social e político, os cidadãos tenham um papel ativo no setor energético. Para tal, é necessário a remoção dos obstáculos existentes no contexto legal e regulamentar nacional para a implementação das Comunidades de Energia Renovável (CER), a fim de acelerar e massificar a sua implementação.
Hoje, as opções para produzir energia renovável, passaram a cingir-se praticamente ao autoconsumo por um lado, ou, por outro, a centrais de grande dimensão, cujas licenças leiloadas, ou atribuídas por acordo com os operadores de rede, estão apenas acessíveis a grandes investidores e empresas. Mas, mais uma vez, não tem de ser assim.
O modelo descentralizado pode beneficiar muito de instalações de dimensão média (até 5MW) tanto em espaços rurais, como em espaços urbanos (zonas industriais ou terrenos contaminados). As instalações de média dimensão permitem investimentos de pequenas empresas e comunidades de energia, como a Coopérnico, bem como o estabelecimento de acordos de compra de energia, que podem tornar os pequenos comercializadores de energia elétrica mais resilientes às flutuações de preço nos mercados de energia, promovendo também maior diversidade nos modelos de produção, dentro do modelo descentralização. Para uma transição energética mais justa, é fundamental simplificar o licenciamento de novas instalações até 5MW, dar prioridade aos projetos que promovam utilizações combinadas como, por exemplo, as soluções “agrovoltaicas”, para proteger a qualidade do solo e continuidade da atividade agrícola e, por fim, a rede elétrica nacional deve criar a capacidade para absorver esta energia produzida.
Sabemos que serão também necessários projetos de produção de energia renovável de grande dimensão. Primeiro, é necessário ter uma política energética que reduza ao máximo os projetos de grande dimensão necessários. Segundo, é necessário que as comunidades locais afetadas estejam no centro dos processos de decisão e que estes sejam acompanhados de uma comunicação transparente e verdadeira ao longo de todo o processo de avaliação e desenvolvimento dos projetos. Devemos também seguir o exemplo de outros países como a Dinamarca e a Holanda, onde é assegurado o direito de participação financeira das comunidades e agentes económicos locais no financiamento (ou estrutura de capital) nos projetos, por exemplo garantindo um enquadramento legal que assegure a obrigatoriedade de uma parte do financiamento ser proveniente de comunidades locais. Por fim, devem ser implementadas medidas em benefício das populações locais, debatidos e acordados, que assegurem a criação e manutenção de riqueza nas regiões onde os projetos são implementados.
A visão da Coopérnico passa por uma sociedade mais igualitária, democrática, guiada por princípios ecológicos e com uma economia assente em energia renovável. Nesta visão, a transição para um novo sistema de energia renovável não deve ser só tecnológica, mas também socialmente mais justa, tornando a energia limpa um bem comum acessível a todos, respeitando as características do território, protegendo a biodiversidade e o meio natural, e garantindo valor social e económico para as comunidades envolvidas.
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