Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: “Diz que é uma espécie de democracia”
Autor: Pedro Jorge Pereira
Filiação institucional: Projecto EduCACES / Independente
E-mail: ecotopia2012@gmail.com
Palavras-chave: democracia, cidadania activa, reflexão
O actual primeiro-ministro e respectivo governo do estado português estabeleceu uma série de medidas relativas ao orçamento de estado para 2012 que representam um tremendo retrocesso relativamente a algumas das principais conquistas do povo português num contexto pós 25 de Abril. Direitos sagrados e consagrados como o do subsídio de férias e de natal vêm-se dessa forma subitamente, num abrir e fechar de olhos “surripiados” em nome de um hipotético e quase profético combate ao “défice” e à “crise”.
Uma prática constante de diversos regimes (e em especial daqueles particularmente autocráticos) tem sido o de encontrar um “inimigo” ou ameaça externa, por vezes interna também, capaz de legitimar e justificar toda uma panóplia de medidas e acções que em circunstâncias normais seriam … aquilo que são: um violento atentado aos direitos e liberdades dos cidadãos.
Numa era de obstinado neo-liberalismo em que a economia de mercado impera sobre tudo e sobre todos, o terrível inimigo essencialmente “externo” (já que nenhum governo assume grande responsabilidade nos elementos causadores e também no agravamento de tão tremendo fenómeno) é a crise económica global. Muito falado é também o obsessivo “combate ao défice” como objectivo primordial na estratégia de enfrentamento à referida crise.
Parece-me que um modelo económico que surgiu e se desenvolveu baseado numa tremenda torrente de especulações financeiras globais e baseado numa economia cada vez mais de base especulativa (e de criação virtual de crédito) do que real não poderia senão caminhar a passos largos para a sua própria implosão. Um modelo económico baseado na produção em massa de bens de consumo supérfluos e descartáveis, a partir de matérias-primas cada vez mais escassas, e com um violento impacto ambiental, não poderia senão manifestar cada vez mais o seu carácter limitado e finito (ao contrário do que preconizam uma grande parte das teorias evidentemente mirabolantes que o justificam). Parece-me ainda que um modelo económico e ideológico que preconiza a “mercantilização” de todos os bens e serviços, nomeadamente os essenciais à vida, como paradigma máximo de crescimento, não pode senão acabar por tornar evidente, mais tarde ou mais cedo, o carácter absurdo da sua suposta legitimidade.
Neste sistema tudo e todos (o próprio ser humano) é reduzido ao seu valor de mercadoria, valor esse que quando reduzido ou insignificante pode significar a assumpção dessa mercadoria ou bem como “refugo” ou matéria dispensável. E numa era do “descartável” nem o próprio valor do “trabalho” (como ferramenta de inserção, coesão e valorização individual no colectivo) se encontra a salvo de se tornar “descartável” através de uma cada vez mais implacável precariedade eufomisticamente designada de “flexibilização”.
A gravidade de todos os devaneios especulativos da banca e da bolsa só não é mais evidente porque o cidadão comum, que aspira somente a viver a sua vida tendo a possibilidade de satisfazer as suas necessidades mais elementares, tem vindo a pagar do seu bolso, do seu esforço, o encobrimento da tremenda vulnerabilidade e disfuncionalidade inerente ao sistema monetário internacional.
Convém não esquecer ainda um detalhe importante: Por detrás de toda uma máquina, de todo um sistema, estão alguns indivíduos que têm de facto um enorme poder aos mais variados níveis. Hoje em dia as principais corporações multinacionais têm, várias vezes, maior poder económico do que vários países juntos. Por outro lado essas multinacionais são detidas pelos seus accionistas. Dito de outra forma: Um conjunto relativamente restrito de indivíduos tem maior capacidade de influência nas decisões que condicionam a vida de milhões de habitantes em todo o planeta (pois o seu raio de acção é cada vez mais “global”) do que essa enorme maioria. Não tanto através da politica (mas também), não tanto através da força militar (mas também), mas sobretudo através dos mercados. E a questão é que quase todas as esferas de decisão e relacionamento são transformadas em peças do enorme tabuleiro de xadrez mercantil.
De certa forma estamos perante uma situação que se pode classificar de neo-feudalismo. Temos já não uma realidade em que os agricultores e artesões tinham a obrigatoriedade de pagar o tributo ao senhor feudal de determinada região (e este posteriormente à coroa) mas uma realidade em que de cada vez que “compramos” algo estamos a pagar o nosso tributo aos senhores que detêm a posse do conjunto cada vez mais restrito de multinacionais que controlam e detêm a produção de uma grande parte dos bens e serviços que utilizamos e necessitamos.
Esses bens e serviços, é importante dizer, são praticamente … todos. Por outro lado é ainda mais importante salientar que os governos tendem muitas vezes (talvez na maioria das vezes) a defender e representar muito mais os interesses dessas corporações, logo desses novos senhores feudais, do que do comum cidadão. No mundo neo-liberal as decisões têm muito mais por propósito garantir “boas oportunidades de negócio e lucro” do que realmente contribuir para o bem-estar da generalidade das pessoas. Na realidade os dois objectivos são em larga medida antagónicos, e o primeiro tende a ser muito mais preponderante num contexto em que um pouquinho mais para esquerda, ou um pouquinho mais para a direita, os principais governos e partidos nunca deixam de obedecer a uma lógica e ideologia obstinadamente neo-liberal. Uma ideologia que, de resto, tem essa propriedade única de parecer uma não-ideologia. Tem essa propriedade de parecer uma “inevitabilidade histórica natural” e não fruto de uma agenda e de um plano estrategicamente traçado pelos principais arautos do neo-liberalismo que começaram a adquirir cada vez maior poder sobretudo na década de 80 com os regimes fundamentalistas do neo-liberalismo de Reagen e Thatcher.
Como é que podemos permitir que a democracia se torne nesta teia de poderes, jogos de interesse e, acima de tudo, mecanismo de perpetuação de poder destes novos, e também velhos, senhores feudais?
O Estado somos todos nós? O Estado é cada vez menos todos nós e cada vez mais o todos eles. É um Estado cada vez menos social e cada vez mais um Estado que trabalha e existe para desregulamentar e implodir tudo aquilo que é serviço e interesse público. É um Estado planeado para o ser só na medida em que possa ser útil ao funcionamento da grande máquina especulativa e corporativa.
O século XX foi pródigo em progressos, conquistas e emancipação dos grupos e classes sociais até aí de uma forma geral quase sempre oprimidas e descriminadas. Um progresso que não surgiu do nada mas que foi o corolário de uma grande luta pela emancipação social e económica dos indivíduos. Pela consagração dos direitos humanos também.
Em poucas décadas de neo-liberalismo, em muitos aspectos, temos vindo a hipotecar e vender, a preço de saldo, muitas dessas conquistas. Em nome, precisamente, do nosso bem-estar. Estranho paradoxo este … termos de abdicar de tudo que é essencial, termos de fazer sacrifícios para um dia mais tarde, quem sabe, podemos recuperar uma parte de tudo o aquilo que agora temos de aprender a viver sem … Não são meros acasos circunstanciais mas políticas, planos e estratégias muito bem delineadas e alvo de meticulosas elaborações em gabinetes nos principais centros do poder neo-liberal.
Todo este sistema precisa de um profundo tratamento de choque. Todo este sistema precisa de ser denunciado e exposto antes que já nada mais haja a salvar.
É tempo de partir para novas formas de luta e de reinvenção democrática. É talvez até tempo de desobedecer de forma pacífica. Como dizia Gandhi, “é um dever moral dos indivíduos desobedecerem a leis que são injustas”, como as desta democracia são cada vez mais. Leis fiscais, leis laborais e leis legislativas.
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