Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: Participação Eleitoral e Participação Popular – As coisas andam todas ligadas
Autora: Inês Zuber
Filiação institucional: CIES-IUL
E-mail: ineszuber@gmail.com
Palavras-chave: Participação, Comissões de Moradores, Democracia
As últimas eleições bateram o recorde ao nível da abstenção em eleições legislativas – cerca de 41%. Em torno deste facto, surgiram alguns debates, análises, artigos que procuravam causas e colocavam interrogações. Vários autores das ciências sociais têm equacionado, ao longo dos tempos, a questão do nível de identificação dos indivíduos com o modelo democrático, nomeadamente analisando a potencial crise do sistema de democracia representativa, instituído nos países ocidentais enquanto lógica dominante de concepção democrática, depois de derrubado o fascismo em diversos países, ao longo do séc. XX.
Esta questão fez-me voltar a um trabalho que realizei há uns anos e que versava sobre a relação entre as Comissões de Moradores e a autarquia de Almada, nos anos posteriores ao 25 de Abril. Salvaguardadas as evidentes distâncias e mudanças sócio-políticas que decorreram desde então até aos nossos dias, deixo dois tópicos para reflexão:
1) Os níveis de abstenção eleitoral, e considerando somente as eleições legislativas, eram bastante baixos no período pós-25 de Abril (8,3% em 1975, 16,7% em 1976 e 12,5% em 1979) e assistimos gradualmente a uma tendência de crescimento da abstenção (com valores superiores nas eleições europeias). Em grande parte, os baixos níveis de abstenção no período subsequente ao 25 de Abril serão explicados pela nova possibilidade de exercer o direito de voto, pela forte mobilização popular que então se vivia e pelas campanhas levadas a cabo contra a abstenção e o voto em branco (Freire, 2000:83) [1]. Detenhamo-nos na variável relativa à “mobilização popular” para chegarmos às formas de organização popular de base que constituíram as Comissões de Moradores (poderíamos também falar de Comissões de Trabalhadores ou de Assembleias Populares, mas não constituíram o objecto do nosso estudo). Os movimentos de moradores desenvolveram-se rapidamente depois do 25 de Abril em torno das questões da habitação e do alojamento, sobretudo em áreas de grande concentração urbana como Lisboa, Porto e Setúbal (Coelho, 1986:646) [2] e foram institucionalizados na Constituição de 1976, ganhando a designação de “organizações populares de base territorial”. Ao longo dos anos assistimos a uma diminuição abissal do número de Comissões de Moradores existentes – embora ainda existam várias Associações de Moradores – e da participação popular que lhes estava associada. Não tendo aqui espaço para discutir as diversas causas do desaparecimento das Comissões de Moradores, é interessante notar que, ainda hoje, o texto da Constituição da República Portuguesa (Revisão de 2005) detém um capítulo (V) consagrado às Organizações de Moradores. Estas compreendem, segundo o texto constitucional em vigor, as Comissões de Moradores e Assembleias de Moradores, estas últimas compostas pelos residentes recenseados de determinada área geográfica. Ou seja, são uma forma de participação, que permanece formalmente, e que faz parte de um lado de uma democracia construída com base na dualidade entre as formas de democracia directa e a institucionalização da democracia representativa [3]. Dualidade não tem necessariamente a ver, como muitas vezes é sugerido, com oposição ou contradição, mas pode antes significar complementaridade ou dialéctica. É evidente que a participação eleitoral não se pode encontrar dissociada dos níveis de participação associativa, política, sindical, sócio-recreativa, cívica, etc. Em Portugal, é importante equacionar como incentivar esta participação e todas as formas de desvalorização ou ataques à participação associativa e sindical – como, por exemplo, a criminalização de iniciativas de protesto ou a limitação de direitos sindicais – não podem estar desligados do debate acerca da participação eleitoral.
2) É evidente que a maior ou menor participação eleitoral dos portugueses não pode deixar de estar relacionada com os níveis de literacia, de acesso à educação e à cultura, de acesso à informação e às melhores ou piores condições sociais em que vivemos. Também estará relacionada com o nível de execução dos programas e promessas eleitorais dos eleitos. No entanto, há alguns exemplos que podem ser dados pelas instituições do Estado (central ou local) que contribuem para fomentar, potenciar, incentivar ou, pelo contrário, frustrar as expectativas dos cidadãos em relação às suas possibilidades de participação. No trabalho já referido, observei que a autarquia de Almada no pós-25 de Abril utilizava um instrumento de contacto com as populações, simplificado e desburocratizado – o Gabinete de Apoio aos Problemas Locais (GAPROL) – o qual parecia, segundo os meus entrevistados, dar uma resposta eficiente ao nível da resolução e encaminhamento de questões. É certo que então se vivia aquilo que alguns autores chamaram o “grau zero do poder local” [4] e que, entretanto, verificou-se toda uma complexificação e modernização técnico-administrativa das instituições estatais. No entanto, quando nos apercebemos, tantas vezes, de um diálogo quase impossível entre o cidadão, com as suas questões quotidianas, e as instituições que não encontram canais simplificados para a sugestão, opinião, protesto, é impossível não reflectirmos sobre a necessidade de desburocratizar e “descomplicar” esta relação. Não vale a pena planificarmos estratégias demasiadamente complexas de participação das populações, enquanto existirem barreiras intransponíveis quando uma pessoa quer contactar uma instituição, sendo que quando o consegue, não obtém uma resposta minimamente satisfatória.
São apenas duas reflexões sobre as questões da participação. Porque, como sabemos, estas coisas andam todas ligadas.
Notas
[1] Freire, André (2000), Participação e abstenção eleitoral em Portugal: análise das legislativas 1975-1995, In Viegas, José; Dias, Eduardo Costa (orgs.), Cidadania, Integração, Globalização, Oeiras: Celta Editora, pp.75-106.
[2] Coelho, Mário (1986), Um processo organizativo de moradores – SAAL/Norte 1974/1976, Revista Crítica de Ciências Sociais, 18/19/20, pp. 645-671.
[3] Nunes, João Arriscado; Serra, Nuno (2003), «Casas decentes para o povo»: movimentos urbanos e emancipação em Portugal, In Santos, Boaventura de Sousa (org.), Democratizar a Democracia. Os Caminhos da Democracia Participativa, Porto: Afrontamento, pp.215-245.
[4] Mozzicafreddo, Juan; Guerra, Isabel; Fernandes, Margarida; Quintela, João (1988), O grau zero do poder local, Sociologia – Problemas e Práticas, 4, pp. 45-59.