O que pintar quer dizer: a emergência de uma cultura urbana transnacional

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: O que pintar quer dizer: a emergência de uma cultura urbana transnacional

Autora: Lígia Ferro

Filiação institucional: Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, CIES-ISCTE/IUL; Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Fundação Universidade do Porto

E-mail: ligia_ferro@hotmail.com

Palavras-chave: Mediação social, culturas urbanas, graffiti.

Legenda: Mural construído no interior do edifício II do ISCTE-IUL (Lisboa) no âmbito da exposição “Breaking the Last Wall”, First International Conference of Young Urban Researchers (FICYUrb). Writers: KAYO, MAR, Mr. DHEO, SCORN, TIME e VHILS (Junho de 2007).

O graffiti hip hop surgiu nos Estados Unidos da América, no final dos anos 60. A pulsão para escrever em espaços públicos é antiga. Contudo, o graffiti hip hop envolve um modo de fazer específico e relacionado com uma teia simbólica de códigos, regras, vivências e representações sociais específicos. A cultura hip hop construiu-se pelas mãos dos jovens dos subúrbios de Nova Iorque, descendentes de imigrantes, que reinventavam os seus quotidianos através da música (Mc’ing. Dj’ing), da dança (breakdancing) e da expressão plástica (graffiti). Na década de 60, Nova Iorque era uma “rotten aple” [1], uma cidade em crise económica, afectada por processos de gentrificação que estiveram na raíz da segregação dos espaços residenciais.

Nos anos 80, a cultura hip hop entra na Europa pela porta francesa, onde se desenvolveu especialmente nas “cités” da periferia de Paris, zonas de residência dos jovens descendentes de emigrantes oriundos da África do Norte, de Portugal e de Espanha. Face ao incremento dos episódios de violência na escola e da multiplicação de actos de “incivilidade”, cria-se um sentimento de medo dos jovens imigrantes que são, à semelhança do caso americano, classificados como uma nova “classe perigosa”.

A cultura hip hop é interpretada por muitos autores como um refúgio ou umaresposta dos jovens desfavorecidos da urbe face às condições sociais e políticas de segregação social e racial que se viviam então. O graffiti ofereceu a estes jovens uma oportunidade de aparecer na cidade (“getting up”), de se inscrever no seu espaço físico. Como disse Bourdieu [2], o espaço físico ocupado pelos actores sociais corresponde de alguma maneira ao espaço social que possuem na estrutura social. O graffiti constitui uma prática de luta pelo espaço físico e social da cidade.

No início, o graffiti construiu-se como uma prática de transgressão social dos jovens excluídos da cidade. Actualmente, o graffiti é a prática mais heterogénea no campo do hip hop: os writers possuem uma pertença classista diversificada e apoiam-se em múltiplas referências culturais. A vivência nesse meio social heterogéneo faz dele um intermediário entre o seu contexto de origem e outras classes sociais e níveis culturais. Os grafiteiros são também “go-betweens” [3], actores sociais que transitam entre diversos pólos, “contrabandeando” ideias, estilos de vida, práticas sociais e objectos.

O graffiti deixou de representar uma mera actividade de transição para a vida adulta. Muitos writers continuam a pintar na idade adulta, quando já adquiriram independência económica do meio familiar de origem, estando inseridos no mercado de trabalho, depois de constituir família, etc. Por outro lado, o graffiti passou a ser considerado uma linguagem visual atractiva para os agentes do campo cultural e artístico [4]. No âmbito da publicidade e do marketing, a estética do graffiti e da street art foi apropriada para efeitos publicitários. Vários responsáveis de agências deste ramo em Portugal referem que a “estética de rua” usada para fins comerciais, ganha um estatuto de “mainstream alternativo”, capaz de atrair o consumidor. Em Lisboa, o graffiti adquiriu um reconhecimento institucional e uma projecção inigualáveis devido à criação da Galeria de Arte Urbana (GAU) [5] em Maio de 2009, um projecto sob a tutela do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa.

A participação dos writers no campo da arte e da cultura já é um dado adquirido no nosso país e em toda a Europa. A multiparticipação destes actores sociais em distintos universos de significado é evidente, assim como a diversidade de formas de representar e de viver o graffiti. Todavia, é de destacar neste contexto de globalização, o processo de construção desta prática como um instrumento de mediação social e cultural. Muitos são os writers que “expressam com clareza um projeto de mediação” [6]. Estes actores sociais concebem o graffiti como uma cultura transnacional, composta por elementos em permanente contacto através das novas tecnologias da informação e da comunicação, com uma grande capacidade de intervenção nos territórios mais desfavorecidos.

Assistimos, assim, a uma espécie de retorno dos writers aos espaços de desenvolvimento inicial da prática. O graffiti é agora encarado por estes como uma prática capaz de empoderar os excluídos, contribuindo para baralhar as cartas que ditam o jogo das desigualdades sociais. Esta ideia é praticada por writers de diferentes origens sociais.

Os writers mediadores coexistem com os grafiteiros de rua, ou seja aqueles que rejeitam a comercialização do graffiti e a participação no mercado da arte, e com os grafiteiros mais comerciais e institucionalizados, isto é, os que aceitam comercializar o seu trabalho e participar como grafiteiros em espaços institucionais. Desta forma, os primeiros para além de mediarem entre diferentes contextos e escalas sociais e territoriais, realizam igualmente uma mediação entre o pólo dos grafiteiros de rua e o dos grafiteiros institucionalizados.

Os grafiteiros mediadores possuem um papel importante nas cidades da América Latina. No Rio de Janeiro muitos writers caracterizam o graffiti como uma “ferramenta de resgate social”, fundamental para mostrar aos jovens caminhos alternativos ao crime organizado das favelas. Como a linguagem visual utilizada é especialmente apelativa para os jovens, o graffiti é um dos meios privilegiados para os cativar para novos horizontes de possibilidades. Em Portugal, formou-se a “Visual Street Performance”, um grupo informal de writers que reivindicam a participação na cidade através da organização de espaços expositivos e de intervenção em espaços públicos e em bairros periféricos.

A formação de uma cultura urbana transnacional de mediação assente na prática do graffiti é evidente. Mais do que uma prática subcultural de transição para a vida adulta, o graffiti é uma prática progressivamente legitimada (nos campos social, político, cultural e económico) e geradora de espaços de mediação que conferem novos sentidos aos quotidianos das populações excluídas. Apesar dos writers alcançarem gradualmente posições sociais no campo da arte, os novos projectos de mediação traçados por eles ainda não reuniram os apoios políticos, financeiros e logísticos necessários à sua concretização. Talvez porque estes projectos não representam meios de produção de mais-valia económica, despertam também pouco interesse por parte dos poderes públicos e mesmo das agências de consagração do mercado da arte.

Notas

[1] Austin, Joe (2001), Taking the Train. How Graffiti Art Became an Urban Crisis in New York City, New York, Chichester, West Sussex, Columbia University Press, 356 pp.

[2] Bourdieu, Pierre (1999 [1993]), “Efeitos de lugar” in Pierre Bourdieu (coord.), A Miséria do Mundo, Petrópolis, Editora Vozes.

[3] Velho, Gilberto (org) (2008), Rio de Janeiro: Cultura, Política e Conflito, Rio de Janeiro, Zahar Editor.

[4] Bourdieu, Pierre (1996 [1992]), As regras da arte. Génese e estrutura do campo literário, Lisboa, Editorial Presença.

[5] http://gau-lisboa.blogspot.com/.

[6] Velho, Gilberto e Karina Kuschnir (org). (2001). Mediação, Cultura e Política. Rio de Janeiro, Aeroplano Editora.

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