10 anos de Capital Europeia da Cultura – ainda a problemática dos (não) públicos

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: 10 anos de Capital Europeia da Cultura – ainda a problemática dos (não) públicos

Autora: Rafaela Neiva Ganga

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Fundação Universidade do Porto

E-mail: rafaela.ganga@gmail.com

Palavras-chave: Cidade, Educação, Cultura

O Porto poderia estar a comemorar uma década decorrida do, afamado, evento Porto Capital Europeia da Cultura (CEC) 2001. Não está. Porque é que não está?

Há cerca de um mês a Fundação Calouste Gulbenkian acolheu a orquestra Som da Rua da Casa da Música [1]. O ex-libris do afamado evento parece ter dedicado uma década a experimentar rumos e formatos de trabalho com os seus públicos e não-públicos, tendo, por fim, regressado ao trabalho educativo directo com a comunidade envolvente, sem grandes preocupações, instrumentalizadoras, de formação de públicos. Igualmente, por estes dias o Teatro S. Luiz, em Lisboa, acolhe o Ciclo de Teatro do Porto? De António Pedro à Fábrica da Rua da Alegria – qual definição de escola ou movimento – um ciclo que tem como objectivo “apresentar a Lisboa o que de melhor se faz no norte do país” (Teatro S. Luiz, 2010) [2]. Porém, será que o próprio norte e o Porto, em particular, sabem o que de melhor aí se faz?

Nascido do trabalho e da memória de Isabel Alves Costa, este ciclo, assim como o concerto da orquestra Som da Rua da Casa da Música na Fundação Calouste Gulbenkian, suscitaram-me uma série de questões, enquanto cidadã desta CEC, e enquanto investigadora das configurações que as interligações entre educação e cultura podem assumir.

Antes de mais, não pretendo, de forma alguma, tratar de desequilíbrios regionais, no que diz respeito à produção e apresentação da cultura. Preocupa-me, antes, questionar o porquê do Porto não ter capitalizado, durante mais de uma década, o investimento europeu, nacional e local depositado na cidade através do evento CEC. Interessa-me, no momento em que, mais uma vez, a programação do único teatro municipal da cidade está a ser colocada em cima da mesa, questionar se fará ainda sentido justificar o desinvestimento público na produção, apresentação e disseminação cultural, recorrendo ao argumento da falta de públicos. Simplesmente, porque é que o reconhecimento da produção cultural que se faz na cidade só ascende aos meios de comunicação mais massificados, ou seja, atinge a generalidade dos(as) cidadaõs(ãs) quando esta tem lugar em Lisboa?

Vejamos, a reclamação por “cultura” no Porto talvez remonte ao “enterro” do museu Soares do Reis, nascendo com ele o Museu de Arte Contemporânea de Serralves. Não é algo novo. Contudo, sem dúvida, nesta última década as transformações nos tecidos social, económico, político e cultural, catapultadas pelas mutações da segunda metade do século XX, originaram novos contextos, assim como relançaram o problema do acesso e do “sucesso” dos públicos na arte e na cultura, em geral.

Instituições dedicadas à produção e apresentação de múltiplas formas de expressão – da música, ao teatro, ou às artes visuais – espalhadas pela cidade, têm gerado uma oferta, cada vez mais frequente e consolidada, de debates, oficinas, visitas orientadas, simpósios, programas educativos em geral, entre outras diversas práticas discursivas. Estas têm vindo a desempenhar um papel de apoio à interpretação da obra de arte. Historicamente, essas práticas discursivas têm sido periféricas à apresentação das obras de arte, tendencialmente representam um papel secundário.

Contudo, as práticas artísticas contemporâneas, apesar de serem aquelas que, por norma, estabelecem relações mais difíceis com os seus (não)-públicos, têm vindo a incorporar estas intercessões discursivas. Que, por sua vez, não são omnipresentes, mas, cada vez mais, são enquadradas em termos de educação, pesquisa, produção de conhecimento e aprendizagem. Além disso, em muitos casos, há um impulso acentuado que as distancia dos formatos pré-estabelecidos de educação em instituições culturais, na medida em que, cada vez com mais frequência, as próprias obras se aproximam de formatos de projectos educativos – o conceito de projectos quasi-educacionais torna-se parte integrante da produção artística. O Fifth Floor, na Tate Liverpool em 2008, ou do Vilnius COOP, em 2009, ambos integrados nas bienais das respectivas cidades, ou mesmo, a mais recente exposição do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Às Artes, Cidadão! são disso exemplos.

Igualmente, a prática curatorial parece, ela mesma, ter vindo a assumir a sua dimensão educativa de forma mais cabal. Se avocarmos que a selecção de uma determinada obra ou artista é baseada numa ideia que o curador quer compartilhar através de uma exposição, ou de um ciclo de teatro, esta parece ser uma prática essencialmente educativa. Tal como Daniel Buren (2010) [3] controverte, se a construção de uma exposição envolve a motivação ou a ambição de oferecer às pessoas algo que elas, supostamente, não sabem, o que é isto senão ensinar?

Contudo, isto não é simplesmente uma reintegração do curador como um perito encarregado de educar o público sobre o conteúdo de uma determinada colecção, exposição ou ciclo, mas sim uma espécie de “curatorialização” da educação, processo pelo qual a educação se torna o objecto e o produto da produção curatorial. O que nos traz a curadoria de arte contemporânea, que se distingue das precedentes, é essa mesma ênfase na elaboração e mediação da arte e da circulação de ideias em torno da arte. Ao invés de se debruçar em exclusivo sobre a sua produção e exibição.

Na adesão a esta leitura ampliada de curadoria, ampliando-a ainda mais à dimensão de programação cultural de uma cidade, como produção discursiva, pretendemos resistir à tendência para privilegiar a distinção entre o processo de produção (protagonizada pelo artista), a distribuição, reprodução e divulgação (protagonizada pela instituição cultural) e a fruição (protagonizada pelos públicos), e colocar a problemática da vivência cultural de uma Capital Europeia da Cultura desde a produção. Responsabilizando todos(as) os(as) intervenientes, sem exclusão dos responsáveis públicos.

Notas

[1] AA.VV. (2011), Som da Rua – projecto da Casa da Música que junta pessoas que vivem com dificuldades, Disponível em URL [Consult. 15 de Jan. 2011]: <http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/NoticiasCultura/2011/1/som-da-rua-projecto-da-casa-da-musica-junta-pessoas-que-vivem-com-dificuldades13-01-2011-16151.htm>.

[2] Teatro S. Luiz (2010), Temporada Set 2o1o ~ Jul 2o11, Disponível em URL [Consult. 18 Fev. 2011]: <http://www.teatrosaoluiz.pt/fotos/brochura/1011_p_1283330430.pdf>.

[3] Buren, Daniel & Davidts, Wouter (2010), “Teaching Without Teaching”, In P. O’Neill & M. Wilson (Ed.), Curating and the Educational Turn, London: de Appel Arts Centre & Open Editions, pp. 217-229.

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