(Re)formar a vida

Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida

Título do artigo: (Re)formar a vida

Autor/a: Joana Codorniz Pinheiro (1), António M. Fonseca (2)

Filiação institucional: (1) Universidade dos Açores (Mestrado em Gerontologia Social), (2) Universidade Católica Portuguesa

E-mail: joanacodorniz@hotmail.com ; afonseca@porto.ucp.pt

Palavras-chave: reforma, adaptação, identidade.

Cada vez mais encarada como parte integrante do ciclo vital e profissional dos indivíduos, a reforma consubstancia-se num ritual de passagem moderno. Assinala a entrada numa fase onde se verifica uma ausência de emprego a tempo inteiro, associada a um rendimento económico proveniente da segurança social ou de outros sistemas de pensões, em que as pessoas se identificam com o novo papel de reformadas.

Se, na sua génese, a reforma estava indissociavelmente conotada com a velhice, enquanto fase da vida onde se manifestava incapacidade para o trabalho, parece ser cada vez mais arriscado fazer essa leitura. Os progressos científicos, tecnológicos, médicos, educativos e sociais, associados às alterações demográficas, permitiram estender a vida até aos limites biológicos dos organismos, juntando idades novas às idades da vida [1]. Ou seja, se antes as vidas eram marcadas pela labuta permanente e por longas carreiras profissionais de 30/40 anos, às quais se seguiam poucos anos de reforma, actualmente, o período de vida profissional activa tem vindo a diminuir, por oposição ao tempo de reforma, de tal forma que é perfeitamente possível viver mais um terço da vida após a reforma.

Além disso, as variações que se têm registado em torno da reforma (saídas precoces, graduais, tardias, desemprego de longa duração, pré-reformas) acentuaram a perda do carácter normativo deste marco psicossocial, progressivamente menos conotado com a idade cronológica e mais relacionado com factores de ordem económica, social ou de saúde dos indivíduos.

A reforma é hoje um conceito polissémico, que pode significar tanto um direito, uma obrigação ou uma etapa do ciclo de vida. Se, por um lado, é verdade que a reforma é um direito acumulado ao longo dos anos de trabalho, por outro, obriga a que, numa idade específica, os individuos tenham de deixar de trabalhar. Deste modo, como direito social adquirido, a reforma pode constituir-se uma obrigação que contraria o direito individual ao trabalho, incorrendo num certo idadismo, no sentido em que se considera que a partir de uma idade específica as pessoas não podem trabalhar, descriminando-as em função da idade que apresentam.

Como etapa do ciclo vital, a reforma adquire um sentido psicosocial [2]. Trata-se de um acontecimento de vida que implica uma transição, envolvendo mudanças em variadíssimos aspectos da vida e cujo sucesso adaptativo implica uma reorganização na vida pessoal procurando manter, ou até melhorar, o bem-estar psicológico e social [3]. Pela complexidade que lhe subjaz, esta transição nem sempre é fácil e assume diferentes significados consoante a forma como os individuos a encaram, podendo acarretar stress a quem a vivencia, cujos reflexos podem ser imediatos ou retardados, visíveis ou não, repentinos ou cumulativos.

A reforma representa muito mais do que o fim da actividade profissional e ultrapassa a dimensão exclusivamente económica, na medida em que o trabalho é, simultaneamente, um dos aspectos que mais concorrem para a identidade pessoal. Na verdade, o trabalho é algo substancial, inerente à trajectória de vida, profundamente valorizado nas sociedades modernas, onde a ética do trabalho, herdada da ética protestante, e o espírito capitalista, predominam. Essa visão economicista encontra-se tão enraizada ao ponto de as pessoas valerem por aquilo que fazem e de serem consideradas velhas quando já não podem, ou não lhes é permitido trabalhar, passando a (sobre)viver de uma pensão de reforma que reforça a noção de inutilidade, não obstante as sua reais capacidades para produzir [4].

De salientar que o trabalho é também o meio pelo qual os indivíduos organizam a sua rotina e os seus horários, estabelecem objectivos e planos, desenvolvem relações, asseguram a sua independência, produtividade e expressam a sua criatividade. Se aceitarmos que o trabalho é como o cordão umbilical que liga as pessoas à sociedade [4], percebemos que a reforma poderá representar, do ponto de vista emocional, um processo acelerador do envelhecimento por precipitar os indivíduos para uma espécie de anonimato social, decorrente da perda de identidade profissional [5].

Ainda que voluntária, desejada e acarretando benefícios para quem a vivencia, a reforma impõe a separação entre o indivíduo e o papel de trabalhador, a par da assunção de um novo papel – o de reformado. Face a isto, somos levados a pensar que a perda do papel laboral pode provocar sentimentos de perda e prejuízos ao nível do self, no sentido em que o indivíduo tem de mobilizar recursos não apenas para fazer face a desafios materiais e contextuais, mas também com vista à (re)definição da sua identidade e do sentido da sua vida. Desta feita, o momento da reforma e a adaptação que implica poderão desencadear situações sensíveis, potenciadoras de alterações na vida/saúde psicológica dos indivíduos. Alguns autores chegam a falar numa síndrome pós-reforma ou neura [3], marcada por manifestações psicossomáticas como apatia, depressão, cansaço, insónia, perda de interesse e isolamento. Contudo, os estudos realizados neste campo não são conclusivos e tornam difícil de predizer se as pessoas adoecem, física e/ou mentalmente após a Reforma, porque se reformaram ou porque já tinham problemas de saúde, não diagnosticados previamente. Aparentemente, os dados existentes levam a supor que mais facilmente as pessoas se reformam por motivos de saúde, do que o oposto [2].

Em todo o caso, o estudo dos efeitos da reforma na vida dos indivíduos deve considerar e diferenciar a reforma estado da reforma processo, uma vez que os efeitos negativos da reforma podem ter interpretações diferentes consoante sejam lidos à luz de uma reacção recente ou de uma situação instalada há muitos anos. Além disso, este processo não pode ser estudado de forma estanque ou isolada, visto que ocorre, tendencialmente, num tempo social e familiar propícios à ocorrência de alterações concomitantes que se influenciarão reciprocamente e que, nalguns casos, poderão mesmo potenciar a reforma [3].

Assim, se a reforma de per si parece não ser traumática, como por vezes se pensa, pelas mudanças que impõe e pelo jogo entre ganhos e perdas que implica, pode gerar uma certa âmbivalência e levantar algumas dificuldades de adaptação, cujo resultado final depende muito da personalidade dos indivíduos, a par de outras variáveis.

Notas

[1] Fernandes, A. A. (2008), Questões Demográficas, Lisboa: Edições Colibri.

[2] Moragas, R. M. (2009), Preparation para la Jubilación, In Fernández-Ballesteros, R. –  Gerontología Social, Madrid: Pirámide, pp. 453-471.

[3] Fonseca, A. M., (2006), O envelhecimento, uma abordagem psicológica, Lisboa: Universidade Católica Editora.

[4] Tomás, M. S. (2001), Mayores, Actividad Y Trabajo en el processo de envejecimento y jubilacion: una aproximación Psico-Sociológica, Madrid: IMERSO.

[5] Alvarenga, L. N. [et al.] (2009), Repercussões da aposentadoria na qualidade de vida do idoso, Revista Escola Enfermagem USP , 43(4), pp. 796-802.

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