Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida
Título do artigo: Insegurança alimentar, Consumo e Crise
Autora: Mónica Truninger
Filiação institucional: Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
E-mail: monica.truninger@ics.ulisboa.pt
Palavras-chave: insegurança alimentar, famílias com crianças, consumo alimentar.
Com o espoletar da crise financeira mundial em 2008, muitas famílias portuguesas passaram a enfrentar acrescidas ou novas dificuldades económicas. Com as políticas de contenção da despesa pública durante e além do período de intervenção da Troika (FMI/Banco Central Europeu/Comissão Europeia), as assimetrias de rendimentos acentuaram-se e, em média, os rendimentos das famílias diminuíram. O risco de pobreza e a privação material aumentaram e afetaram, de forma particular, as crianças, os jovens e as suas famílias. Em 2011 a taxa de risco de pobreza antes de qualquer transferência social foi de 45,4%, o que representou um aumento de 3,9% face a 2008 [1]. Apesar de, em 2012, a taxa de privação material severa entre os jovens até aos 17 anos ter registado um valor ligeiramente inferior ao de 2008, em 2009, 27,4% das crianças e dos jovens com idade inferior a 16 anos estavam privados do consumo de dois ou mais itens de consumo básico, entre os quais a ingestão de três refeições diárias, pelo menos uma refeição de carne ou peixe ou a ingestão diária de fruta e vegetais [2]. No mesmo ano, a taxa de privação material das crianças que vivem em agregados onde ambos os progenitores estão desempregados atingiu os 73,6% [2]. Estes dados apontam para a prevalência de anteriores condições de pobreza e, simultaneamente, para o aparecimento de novas situações de vulnerabilidade social que afetam, sobretudo, as famílias com baixos rendimentos, com filhos e as famílias cujos progenitores se encontram em situação de desemprego. Nas famílias mais carenciadas e nas que têm filhos, as despesas com a alimentação assumiram um peso significativo sobre os seus orçamentos, dificultando o acesso a padrões alimentares considerados mais saudáveis cujas recomendações oficiais promovem a diminuição do consumo excessivo de proteína animal, e encorajam um maior consumo de fruta e vegetais. Constatou-se também que o acesso à alimentação fora de casa (e.g. restaurantes) permaneceu bastante limitado pela falta de capacidade económica das famílias. Os dados da Federação Nacional de Bancos Alimentares chamam a atenção para o número crescente de pessoas ajudadas por organizações sem fins lucrativos: antes da crise económica os bancos alimentares forneciam ajuda a 189,152 indivíduos; em 2012 o número de pessoas cresceu para 418,881 (um aumento de 114%). O número de instituições apoiadas pela Federação Nacional dos Bancos Alimentares também aumentou de 1056 em 2003 para 2600 em 2014 [3]. Este contexto traz à tona a incapacidade de muitas famílias portuguesas ao acesso a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficientes para as suas necessidades diárias. Questões que se inserem na concetualização da insegurança alimentar.
O conceito de insegurança alimentar tem sido objeto de debates e redefinições desde os anos 40. Durante décadas serviu para abordar as questões da fome em países com altas taxas de pobreza. Nos últimos anos, o conceito tem-se tornado cada vez mais multidimensional e inclui cinco dimensões de análise: o acesso aos alimentos, a disponibilidade, a estabilidade, a adequação e, mais recentemente, a sustentabilidade. Segundo Morgan e Sonnino [4] estamos perante uma nova equação alimentar caracterizada pela volatilidade dos preços na alimentação; a transição nutricional nos países e economias emergentes (procura de carne e produtos lácteos); a segurança alimentar cada vez mais equacionada como uma questão de segurança nacional; o efeito das alterações climáticas nos sistemas agroalimentares e, por fim, os crescentes conflitos sobre recursos naturais, incluindo terra, água, florestas, entre outros. Todas estas questões proporcionam novas lentes sobre o conceito de insegurança alimentar abarcando não só as dimensões clássicas como a nutrição e análise das calorias nas dietas, mas também dimensões de cariz mais sociológico (por exemplo, a inclusão social, a reconfiguração das políticas de proteção social em contextos de crise económica nos países mais desenvolvidos; as minorias étnicas e os emigrantes), bem como ambientais (por exemplo, as questões do desperdício alimentar, alterações climáticas, e a pressão dos recursos naturais), e também as dimensões do direito humano à alimentação, e das culturas alimentares locais/regionais.
De forma a analisar e aprofundar estas questões tem lugar em 2014 o “Estudo de caracterização da pobreza e insegurança alimentar nas famílias portuguesas com crianças em idade escolar”, financiado pelo Programa Operacional de Assistência Técnica do Fundo Social Europeu e pelo Estado Português. Com base em metodologias quantitativas e qualitativas este estudo procurou identificar situações de pobreza e insegurança alimentar das famílias portuguesas com crianças em idade escolar, traçando um diagnóstico destas condições e examinando como a alimentação das crianças e das suas famílias está a ser afetada pelos atuais constrangimentos socioeconómicos (por exemplo, as suas estratégias para fazer face à transformação das suas condições de vida). Os resultados mostram que a insegurança alimentar (grave, moderada e/ou ligeira), apesar de mais prevalecente nos segmentos economicamente mais vulneráveis, atravessava já, em 2014, o tecido social de modo transversal. Tal como noutros estudos confirmou-se também que as transformações ocorridas nos últimos anos conduziram a um agravamento das condições económicas das famílias, muitas vezes impulsionado pelo desemprego mas, também, pelos cortes nas transferências sociais. Nesse sentido, foram as famílias que perderam a maior parte dos seus rendimentos e que, em alguns casos, continuam a não ter acesso a nenhum tipo de apoio alimentar, que mais alterações tiveram que fazer à sua alimentação [5].
Notas:
[1] INE (2013) Inquérito às Condições de Vida e Rendimento – 2012 (Dados Provisórios). Instituto Nacional de Estatística, disponível em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=156015568&DESTAQUESmodo=2. Acesso 8 de Março de 2015.
[2] EUROSTAT, EU-SILC survey (2014), Living conditions in Europe. http://ec.europa.eu/eurostat/documents/3217494/6303711/KS-DZ-14-001-EN-N.pdf/d867b24b-da98-427d-bca2-d8bc212ff7a8. Acesso em 26 Fevereiro 2016.
[3] Banco Alimentar (2013), Relatório de Atividades – 2013, disponível em http://lisboa.bancoalimentar.pt/article/25. Acesso a 8 de Março 2016.
[4] Morgan, K. & Sonnino, R. (2010), The urban foodscape: world cities and the new food equation. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, Vol. 3, nº2, pp. 209-224.
[5] Truninger, M., Teixeira, J., Fontes, A. & Horta, A. (2015). Estudo de caracterização da pobreza e insegurança alimentar doméstica nas famílias portuguesas com crianças em idade escolar. Relatório Final. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
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