Dimensão analítica: Saúde
Título do artigo: Questões em torno da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários
Autora: Lurdes Teixeira
Filiação institucional: IPSN – CESPU e CIES – IUL
E-mail: mlurdes.teixeira@ipsn.cespu.pt
Palavras-chave: reforma, cuidados de saúde primários.
A reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) iniciou-se em 2005. Primeiramente com a criação de um Grupo de Trabalho e, posteriormente, com a Missão para os Cuidados de Saúde Primários – uma entidade sob a tutela do Ministério da Saúde que foi responsável pela conceção e implementação das medidas políticas. Segundo o programa do XVII Governo Constitucional, a reforma tem por principal objectivo centrar o sistema de saúde nos CSP. Qual é a conceção política de reforma dos CSP?
No terreno, a concretização da primeira novidade da reforma deu-se com a criação das Unidades de Saúde Familiar (USF), ainda no decurso do ano de 2006 (primeiramente enquadradas pelo Despacho Normativo 9/2006, de 16 de Setembro e mais tarde o Decreto-Lei nº 298/2007, de 22 de Agosto que estabelece e detalha o normativo do regime de funcionamento destes organismos). Este novo modelo de organização do trabalho, fundado em princípios da Nova Gestão Pública (NGP), comporta alguma complexidade. Sinteticamente, o conceito proposto baseia-se na constituição de pequenas equipas, constituídas por médicos, enfermeiros e administrativos, que se candidatam voluntariamente à constituição da USF. O modelo assenta na definição de um programa de ação, vulgarmente designado por “carteira básica de serviços”, onde a equipa estabelece um conjunto de objetivos, obrigatoriamente contratualizados, até 2009, com o Centro de Saúde (CS) respetivo, e a partir desta altura com o Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) onde estão integradas. As USF podem ser modelo A ou B [1], consoante o grau de desenvolvimento das equipas, correspondendo a cada tipologia diferentes esquemas de incentivos institucionais e remuneratórios. Em geral, todas as USF iniciam o funcionamento em modelo A, transitando posteriormente para modelo B se o nível de concretização dos indicadores for avaliado positivamente. As unidades que funcionavam em Regime Remuneratório Experimental poderão passar automaticamente para o Modelo B ou farão essa transição muito mais rapidamente.
Aos primeiros anos da criação das USF segue-se a publicação do Decreto-Lei 28/2008, de 22 de Fevereiro que estabelece uma profunda reestruturação de todo o setor dos CSP. Os CS são agregados em ACES, definidos a partir de critérios geodemográficos, e são criadas novas unidades de prestação de cuidados e serviços: a Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC); a Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP); a Unidade de Saúde Pública (USP); o CS é rebatizado em Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). Administrativa e organizacionalmente a reforma é de grande complexidade: reconfigura quadros organizacionais e relações de trabalho; reordena hierarquias formais e informais; estabelece novos canais e circuitos de poder; cria novos centros de decisão; redefine fronteiras e territórios profissionais, entre muitos outros aspetos. Desconhece-se, por enquanto, o alcance e a profundidade dos efeitos provocados nestes domínios.
Do outro lado, o cidadão-utilizador desconhece este novo desenho do mapa organizacional dos CSP. Resiste à designação Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados e quase todos – órgãos de comunicação social e responsáveis da tutela – continuam a utilizar o termo CS. Ignora o que é uma URAP ou uma USP. Alguns podem recorrer aos serviços da UCC porque esta existe na sua área de residência, mas para a maioria esta é uma entidade inexistente e, portanto, desconhecida e inacessível. Nesta existência/inexistência de algumas unidades reside, inquestionavelmente, uma discriminação socio-geográfica dos cidadãos no acesso aos serviços e cuidados.
Na impossibilidade, por limitação de espaço, de abordarmos todas as unidades do ACES, fazemos breves considerações a respeito da USF – a primeira a ser implementada no terreno. Sendo verdade que à USF estão associadas vantagens para profissionais e doentes, é igualmente certo que veio colocar um conjunto de novas questões das quais se destaca: 1) como compatibilizar as lógicas de gestão empresarial com cuidados de saúde primários que, por definição, se fundam numa abordagem global e contextual do doente e da doença?; 2) a co-existência de dois modelos de organização e prestação de cuidados – o antigo centro de saúde, atualmente redenominado de UCSP –, e a USF produz e/ou reforça as desigualdades em saúde? Isto é, o doente da USF dispõe de serviços e formas de acesso ao cuidado que os outros cidadãos não dispõem. Não é isto uma “nova desigualdade” em saúde? Acrescenta-se ainda que a assimétrica localização geográfica das USF produz igualmente disparidades territoriais no mapa dos CSP, com uma clara tendência de concentração nas zonas urbanas. Repare-se: em Junho de 2013 estavam em funcionamento 357 USF, destas 185 estavam localizadas na zona norte, 112 na zona de Lisboa e Vale do Tejo, Algarve e Alentejo tinham, respetivamente, 9 e 14 USF [2].
O estudo que realizamos no âmbito do curso de doutoramento [3] permitiu levantar um conjunto de questões de evidente interesse sociológico: a criação da USF em simultâneo com o centro de saúde tradicional produz novas desigualdades, quer para os profissionais (os da USF usufruem de condições remuneratórias distintas dos do CS/UCSP e de instalações físicas novas ou renovadas, bem equipadas e mobiladas), quer para os doentes que dispõem de melhores condições de acessibilidade ao cuidado. Outras variantes podem e devem igualmente ser introduzidas nesta discussão: o registo permanente dos indicadores de desempenho dos profissionais nos sistemas informáticos é cada vez mais mediado pelo écran do computador e estará a reconfigurar a relação doente/médico e doente/enfermeiro; a racionalização de tempos e atos clínicos, inteiramente definidos por um conjunto de indicadores padronizados, limita o campo de intervenção e o raio de decisão do médico e do enfermeiro; a estandardização e formatação das tarefas a partir das exigências impostas pelo cumprimento dos indicadores reduzem a importância e a utilização do saber científico. Porque quase tudo está pré-definido pelos programas contratualizados, a autonomia profissional de médicos e enfermeiros está em profunda recomposição e redefinição.
São estas e outras questões que é importante ver discutidas pelos decisores políticos, pelos profissionais de saúde e pelos cidadãos em geral. Mas neste momento a reforma dos CSP, que já teve palco e tempo nos meios de comunicação social, está distante das agendas políticas e mediáticas.
Notas:
[1] Existe ainda o modelo C, considerado de carácter supletivo, destinado às USF do setor social, cooperativo e privado.
[2] Cuidados de Saúde Primários e Ministério da Saúde (2013), USF, disponível em http://www.mcsp.min-saude.pt/Imgs/content/page_32/candnac_20130408.pdf.
[3] Teixeira, Lurdes (2012). A Reforma do Centro de Saúde: percursos e discursos.