Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: Teatro Nacional de São João (TNSJ): Arte como ação coletiva
Autora: Sara Joana Dias
Filiação institucional: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: sarajoanadias@hotmail.com
Palavras-chave: teatro, públicos, art worlds.
Em stricto sensu identificamos como arte um produto na sua forma final, ou se preferirmos, a obra desenvolvida pelo labor direto do artista. Todavia, o raciocínio linear poderá encobrir todo um conjunto de elos essenciais para a concretização do objeto artístico. Seguindo a orientação de Howard Becker [1] é possível sustentar que este é antes processo coletivo, produto social resultante da cooperação de diversas pessoas e valências. Para perceber melhor as redes que se tecem nos “art worlds” é seguidamente recuperada uma ilustração de Becker [1] que demonstra a extrema complexidade envolvida num concerto de orquestra sinfónica:
“For a symphony orchestra to give a concert, for instance, instruments must have been invented, manufactured and maintained, a notation must have been devised and music composed using that notion, people must have learned to play the notated notes on the instruments, times and places for rehearsal must have been provided, ads for the concert must have been placed, publicity arranged and tickets sold, and an audience capable of listening to and some way understanding and responding to the performance must have been recruited” [1].
Através desta perspetiva compreendemos claramente que o Teatro Nacional de São João (TNSJ) transcende o imponente edifício que o constitui. Caracteriza-se como uma entidade orgânica, composta por pessoas que ocupam variadíssimas funções: técnicos (oficinas de costura/adereços, montagem de palco, luz/som); diretores artísticos; encenadores; atores; publicitários; outros colaboradores; e claro, o público. Todos estes elementos, invisíveis elos inerentes aos “art worlds”, desempenham um papel fundamental na manutenção e no funcionamento do TNSJ criando simultaneamente obras artísticas e a identidade do espaço [2].
Voltaremos novamente a esta questão, antes interessa esclarecer que o desafio proposto para a elaboração do presente artigo surge face à participação no projeto “O Público Vai ao Teatro”, conceptualizado pela companhia teatro meia volta. Na sua essência, um trabalho hibrido de investigação-ação desenvolvido com recurso a uma equipa multidisciplinar, composta por profissionais da sociologia, teatro, vídeo, jornalismo, produção cultural, assistência social e animação sociocultural [3]. Uma espécie de “etnografia dos públicos em ação” [4] que trabalhou representações e práticas teatrais com a comunidade da Sé, mais especificadamente, indivíduos pertencentes aos organismos Associação de Solidariedade da Zona das Fontainhas e Junta de Freguesia, ou seja, vizinhos próximos do TNSJ. Importa aqui salientar que este estudo não desfrutou da colaboração formal do TNSJ (quanto a financiamento direto), mas, nas duas fases que compuseram as atividades empreendidas na comunidade local, foi possível estabelecer uma cooperação informal e entusiasta com a instituição.
Neste sentido, o repto terá como bússola a experiência pessoal, enquanto parte integrante de uma equipa de investigação que teve acesso ao interior deste edifício. Se por um lado, a visão encerra impressões enquanto elemento desse grupo e inclusive visitante do espaço, também se pauta pelo necessário olhar sociológico desinteressado.
O contacto com o espaço cultural foi realizado em diferentes e brevíssimos momentos que se estabeleceram num intervalo de dois anos (2011-2012). A primeira aproximação na qualidade de visita guiada organizada por profissionais especializados do TNSJ, e posteriormente uma ida ao teatro que se concretiza no renovado Teatro Carlos Alberto (TeCA). A segunda experiência possibilitou uma apropriação mais íntima do espaço, através do acompanhamento de ensaios e processo de criação mais amplo (oficinas/montagem de palco) da peça Casas Pardas, encenada por Nuno Carinhas.
No decurso destes (re)encontros, foram recolhidas informações relativamente ao relacionamento da pequena amostra de habitantes da Sé, e a imponente figura que compõe o quotidiano citadino dos seus residentes. Observou-se um certo distanciamento funcional com o equipamento cultural, embora contrabalançado por uma memória emocional e afetiva muito vincada, um sentimento de orgulho, cuidado e estima [3]. Contrariamente, no domínio da programação cultural disponibilizada, vislumbrou-se uma severa crítica no que concerne à sua oferta, considerada inacessível e/ou de difícil interpretação [3]. O TNSJ encontra-se exposto a incontornáveis ditames de excelência que afetam programação/divulgação, o que evidentemente gera restrições, principalmente quando pensamos numa população idosa, muito jovem, ou sem grande escolaridade como a reunida neste grupo. Infelizmente as razões do hiato entre população/TNSJ não se circunscrevem ao “gosto”. Destaca-se ainda o preconceito em termos do “outro” público que visita este local, i.e., “gente mais chique”, “mais moderna”, com maior capital cultural/financeiro, uma representação que reproduz modelos de vergonha social impedindo uma ligação mais estreita entre espaços culturais/população local [3].
A segunda experiência deste estudo permitiu visualizar in loco como arte pode ser fruto de um complexo processo coletivo, retomemos essa ideia articulando-a ao recente esforço de reaproximação do TNSJ ao público da cidade.
Perseverando o reconhecido empreendimento de Ricardo Pais, o encenador Nuno Carinhas (atual diretor do TNSJ), tem fomentado a aposta na produção teatral do Porto e uma crescente abertura à comunidade como filosofia da instituição. Uma postura francamente percetível na participação em projetos propostos por companhias independentes/emergentes como o teatro meia volta; no incentivo a um conjunto de atividades que extrapolaram o palco, por exemplo, o ciclo de debates promovido no âmbito da peça Casas Pardas, o evento “Falemos de Casas – Mesas Redondas” que teve lugar na FLUP; ou projetos educativos e workshops que dinamizam durante o ano.
É possível discutir se a programação será elitista, difícil para quem não possui um habitus incorporado de disposições duradouras [5], que permitam uma maior compreensão do cartaz levado a palco, porém, ajusta-se recordar que este Teatro assume designação Nacional e como tal, encontra-se sob constrangimentos de ordem cultural erudita superiores, dirigidos para um público que certamente extravasará o núcleo de habitantes da cidade.
Notas
[1] Becker, Howard (1974), Art as Collective Action, American Sociological Review, 39, 6, pp. 767-776.
[2] Fazem também parte da instituição TNSJ equipamentos como o Teatro Carlos Alberto e o Mosteiro São Bento da Vitória.
[3] Dias, Sara Joana; Lopes, João Teixeira (2012), O Público Vai Ao Teatro – Relatório Final (Parte I), Disponível em URL [Consult. 26 junho 2013] <http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id07id1419&sum=sim>.
[4] Lopes, João Teixeira (2007), Da Democratização à Democracia Cultural, Porto: Profedições.
[5] Bourdieu, Pierre (1989), O Poder do Simbólico, Lisboa: Difel.