Por que famílias estão envenenando seus recém-nascidos?

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Por que famílias estão envenenando seus recém-nascidos?

Autora: Érica Valente Lopes

Filiação institucional: Doutoramento em Direito na Universidade Federal do Ceará em cotutela no Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra

E-mail: valente.erica@gmail.com

Palavras-chave: Leite infantil, Açúcar, Insegurança Alimentar e Nutricional, Colonialismo Alimentar.

Em 2016, a Organização Mundial de Saúde publicou orientações sobre formas inadequadas de alimentos para lactantes e crianças pequenas, a recomendar a não utilização de açúcares ou adoçantes na alimentação de bebês com menos de três anos, principalmente nos comercializados como substitutos do leite materno [1].

Apesar do rígido controle, em 2024, evidenciou-se uma prática de colonialismo alimentar envolveu a multinacional Nestlé. O produto Cerelac, comercializado com zero açúcares na Suíça, é vendido com adição de 3 a 7 gramas de açúcar por porção a bebês e crianças de países em vias de desenvolvimento. Foi o que apontou a investigação da Public Eye (ONG sediada na Suíça) em colaboração com a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (IBFAN) [2].

Possuem os bebês de países mais pobres os mesmos direitos humanos dos mais ricos? Os produtos analisados foram:

  • Cerelac – bebês a partir dos 6 meses.
  • Nido – a partir de 1 ano de idade.

Infelizmente, a prática não é uma novidade. Em março de 1974, a multinacional envolveu-se na mesma polêmica, quando a investigação da War or Want, capitaneada por Mike Muller, revelou o acréscimo de açúcares em leites para bebês de países do 3º mundo, o que ficou conhecido como: The Baby Killer [3].

À época, em resposta, os órgãos internacionais de controle criaram o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno (1981). Este recomenda o aleitamento materno exclusivo durante os primeiros seis meses de vida. Contudo, nota-se que há uma falha no monitoramento dessas normativas [4]. A prática viola o direito humano à alimentação adequada (art. 11, PIDESC), uma vez que comercializa produtos não saudáveis, ferindo a Segurança Alimentar e Nutricional, além do Codex Alimentarius.

A temática é uma preocupação presente na União Europeia que vincula os Estados membros a efetivarem internamente políticas de fomento a alimentação saudável, desde a produção até o consumidor final, pelo rótulo dos produtos, Regulamento (UE) n.º 1169/2011 [5]. A finalidade é atingir “um elevado nível de proteção da saúde dos consumidores e de garantir o seu direito à informação”, levando em conta as diferenças de percepção e necessidade de informação (art. 1.1) e, para tanto, “importa assegurar uma informação adequada dos consumidores sobre os alimentos que consomem”.

Em mesmo sentido, o Regulamento (CE) nº 178/2002 determina os princípios e normas gerais da legislação alimentar, além de criar a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos – EFSA (ASAE, em Portugal) e estabelece procedimentos em matéria de segurança dos gêneros alimentícios.

No produto Nido, dos 29 produtos examinados em países de baixo e médio rendimento, 21 deles (72%) continham adição de açúcar. Em 10 destes, conseguiu-se determinar a quantidade de açúcar adicionado com a média de quase dois gramas por porção, com o destaque do Panamá com 5,3g/porção [2]. Porém a prática não se limita apenas a países em vias de desenvolvimento. Mesmo em continente Europeu, alguns países recebem doses “menos generosas” de açúcares, a exemplo de Portugal, o qual recebe e produz produtos com a adição de 0,3g por porção. São os bebês portugueses iguais aos suíços?

Pode-se sugerir a resposta de que para a Nestlé nem todos os bebês são iguais no que diz respeito ao açúcar adicionado, conforme depreende-se da tabela abaixo:

 

Tabela 1

ADIÇÃO DE AÇÚCARES

(Para melhor elucidação, 4g/porção equivale a uma colher de chá de açúcar)

CERELAC (Mucilon)
Suiça Sem açúcares
Alemanha Sem açúcares
Reino Unido Sem açúcares
Portugal 0,3 grama/porção
Brasil 3 gramas/porção (em média)
Etiópia 5 gramas/porção
África do Sul 6 gramas/porção
Senegal 6 gramas/porção
Tailândia 6 gramas/porção
Filipinas 7,3 gramas/porção

Fonte: [2] (elaboração pela autora)

Os dados são alarmantes e muitas famílias acreditam alimentar bem seus filhos, sem que o direito à informação clara e verdadeira seja respeitado. A isso deve-se o grande investimento da empresa em marketing, promovendo campanhas com bebês felizes, saudáveis e recomendadas por médicos, nutricionistas e cientistas renomados. São tão convincentes que, em 2022, a OMS publicou o impacto das estratégias de marketing digital na promoção de substitutos do leite materno.

A Nestlé também investe na participação em órgãos e conselhos nutricionais no intuito de influenciar padrões regulamentares mais convenientes aos seus interesses, como na Comissão do Codex Alimentarius (CAC), a qual é fomentada por um fundo internacional, compreendendo membros de 188 países, 1 organização (UE) e mais de 230 observadores (organizações intergovernamentais, não governamentais e agências das Nações Unidas).

Contactada, a Nestlé, interessantemente, afirmou estar dentro das regras do Codex Alimentarius, pois o documento ainda permite açúcares em até 20% em cereais infantis [7]. O que é escondido da marca nº 1 em alimentos infantis do mundo (vendas superiores a um bilhão de dólares em 2022 – Euromonitor) é um duplo padrão injustificável. Para Nigel Rollins, cientista da Organização Mundial da Saúde (OMS), os fabricantes podem estar a acostumar as crianças num determinado nível de açúcar desde muito cedo para que depois dêem preferência a produtos com alto teor de açúcar [2].

Interessante pontuar que a Nestlé Portugal obteve um aumento dos negócios em 711 milhões de Euros no ano de 2023, 34 milhões a mais quando comparado ao ano anterior. Comprou localmente mais de 60% das suas necessidades totais de matérias-primas, com 900 empresas nacionais fazendo parte da sua lista de fornecedores. Desse montante, 51 milhões são dedicados ao marketing da empresa [6]. Com tanto crescimento econômico, será que os produtores possuem ciência de que o produto final pode estar adoecendo milhares de crianças do mundo, inclusive de seu próprio país?

Em Portugal, 31,9% das crianças de 6 a 8 anos têm excesso de peso, estando 13,5% destas, obesas. Apesar do país ser classificado como o 8.º mais preparado para combater a obesidade (World Obesity Atlas, 2023), o crescimento projetado da obesidade infantil é de 3,5% ao ano. Isso representa um impacto econômico de 2,1% do PIB nacional em 2030 e 2,2% em 2035 [8] [9].

Imprescindível alertar os leitores da seriedade e risco a que crianças estão expostas, vez que a alimentação inadequada está associada a mais mortes do que qualquer outro fator de risco, ameaçando as gerações futuras, já que a obesidade atinge a infância e a adolescência. O SOFI 2023 prevê que quase 600 milhões de pessoas sofrerão de subnutrição crônica até 2030 [10].

Notas:

[1] World Health Organization. (2022). WHO reveals shocking extent of exploitative formula milk marketing. Disponível em: https://www.who.int/fr/news/item/28-04-2022-who-reveals-shocking-extent-of-exploitative-formula-milk-marketing

[2] Public Eye. (2024). Nestlé & Babies. Disponível em: https://stories.publiceye.ch/nestle-babies/

[3] Muller, M. (1974). The Baby Killer. War or Want.

[4] Hazan, P. (1998). Le lait pour bébé, plaie des pays pauvres: 1,5 million de nourrissons meurent chaque année faute d’être alimentés au sein. Libération. Disponível em: https://www.liberation.fr/planete/1998/05/25/le-lait-pour-bebe-plaie-des-pays-pauvres-15-million-de-nourrissons-meurent-chaque-annee-faute-d-etre_236961/

[5] European Parliament & Council of the European Union. (2011). Regulation (EU) No 1169/2011 on the provision of food information to consumers. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2011:304:0018:0063:PT:PDF

[6] Lusa. (2024). Volume de negócios da Nestlé Portugal sobe 5,5% para 711 milhões em 2023. Notícias ao Minuto. Disponível em: https://www.noticiasaominuto.com/economia/2542065/volume-de-negocios-da-nestle-portugal-sobe-5-5-para-711-milhoes-em-2023

[7] Swissinfo. (2019). Nestlé balaie les critiques sur le lait infantile. Disponível em: https://www.swissinfo.ch/fre/economie/lait-infantile_nestl%C3%A9-balaie-les-critiques/45481882

[8] The Portugal News. (2025). Ministry of Health calls for action against obesity. Disponível em: https://www.theportugalnews.com/news/2025-03-04/ministry-of-health-calls-for-action-against-obesity/95991

[9] Direção-Geral da Saúde. (2023). Ranking mundial coloca Portugal como um dos países mais preparados para combater a obesidade. Disponível em:  https://www.dgs.pt/em-destaque/ranking_obesidade.aspx

[10] Food and Agriculture Organization. (2023). The state of food security and nutrition in the world 2023. FAO. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cc3017en

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