A “Água que Une” também separa

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: A “Água que Une” também separa

Autor: José Gomes Ferreira

Filiação institucional: Universidade Estadual da Paraíba e Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: jose.ferreira@outlook.com

Palavras-chave: Água, Barragens, Estratégia nacional.

No dia 9 de março de 2025, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, acompanhado pela ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, e pelo ministro da Agricultura e Pescas, José Manuel Fernandes, apresentou, em Coimbra, a Estratégia Nacional de Gestão da Água – «Água que Une», documento classificado pelo anterior governo como “um ambicioso plano de acções e investimentos para garantir a gestão sustentável deste recurso, em todo o território nacional, ao longo dos próximos 15 anos” [1].

Ainda que a estratégia tenha como foco Portugal Continental, a situação de seca experimentada pela região do Algarve desde 2022 deu um importante impulso à proposta. A persistência da seca levou, no dia 5 de dezembro de 2023, a Agência Portuguesa do Ambiente a declarar a região em situação de seca hidrológica, confirmada posteriormente através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 26-A/2024, de 20 de fevereiro de 2024, que aprova um conjunto de medidas restritivas de uso da água. Algumas medidas foram recentemente aliviadas, podendo ser canceladas, uma vez que, segundo o Boletim de Armazenamento nas Albufeiras de Portugal Continental, de 24 de março de 2025, se registou uma melhoria significativa do volume acumulado de água, em particular nas bacias hidrográficas do Barlavento, que atingiram 55,6% da sua capacidade [2].

A estratégia «Água que Une» tem como pontos fortes o caráter articulador com outras medidas, a prioridade na reabilitação e otimização de infraestruturas, de modo a reduzir riscos e perdas, e a promoção da utilização de água residual tratada. Porém, ao propor a construção de mais barragens e mais ligações, busca aumentar a oferta de água, ignorando a redução futura das disponibilidades hídricas em resultado da crise climática [3]. Assim, propõe um aumento da disponibilidade de água através da construção de infraestruturas, quando é necessário dar prioridade à redução da procura, pois, tal como referiam, em 2023, Joaquim Poças Martins e Francisco Godinho, “será imperioso atuar de forma decidida do lado da procura, contribuindo para adaptar as utilizações à água disponível” [4].

O documento apresenta uma clara e legítima ambição de fortalecimento dos órgãos públicos, em termos organizativos e técnicos, com medidas que atualizam os processos de digitalização e monitorização da água, com a intenção de uma aposta na eficiência, resiliência e inteligência. Mas, na abordagem regionalizada, justifica o investimento em barragens e aproveitamentos hidroagrícolas, com base no argumento de que as infraestruturas hídricas induzem ao desenvolvimento do país e evitam que a água chegue ao mar, posições que devem merecer ponderação. Sem esquecer que as disputas recentes mostram que o regresso do plano para construção de novas barragens poderá significar o regresso de novos conflitos socioambientais.

Entre os pontos negativos, destacamos ainda as omissões do documento quanto à temática das águas superficiais provenientes de bacias transfronteiriças e quanto aos problemas da poluição que afetam os rios nacionais. A discussão sobre o preço da água somente é trazida na perspectiva da sustentabilidade económica e financeira das entidades gestoras, assumindo que “deve ser uma prioridade, assegurando a implementação de tarifas adequadas que permitam a recuperação dos custos” [3].

Entre as reacções que a Estratégia recebeu à data do lançamento, citamos a concordância da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) a qual “aplaude, com cautela, para ver a sua efetiva concretização”, realçando através do seu presidente, Mendonça e Moura, o “mérito de, pela primeira vez, prever o uso eficiente da água para todo o país”. Alertando que só “não pode acontecer com este anúncio é ficar na gaveta, nem depender de ciclos políticos” [5].

Em sentido contrário, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável afirmou ser uma “duvidosa aposta no forte aumento da oferta de água para responder àquelas que têm sido as exigências do setor agrícola”, ao mesmo tempo que “ignora os desafios climáticos futuros”. Acrescentando a Zero que, o volume de “investimento de 5 mil milhões de euros exige uma definição clara de prioridades e uma calendarização detalhada” [6]. Já a WWF Portugal alertou para uma “estratégia nacional de investimentos megalómana e apressada, sem o devido respaldo e acordo prévio de outros partidos, dos municípios afetados e das organizações da sociedade civil.” Uma estratégia totalmente “em contraciclo com a estratégia da UE que visa assegurar uma maior conectividade” de “25 000 km de rios de curso natural até 2030” [7].

A Estratégia esteve em consulta pública no portal Participa.pt de 25 de março a 25 de Abril, um período curto para apelar à ampla participação e marcado pelo facto do Governo se encontrar em gestão, dada a rejeição na Assembleia da República da moção de uma confiança no dia 11 de Março de 2025.

Em conclusão, a estratégia “Água que une” pode ser um primeiro passo no sentido de preparar o país para a melhoria da eficiência hídrica, reforço da resiliência e interligação e armazenamento de água. Ainda assim, o processo não começou da melhor maneira, dado que não resultou de diálogo no processo preparatório, e quando o governo abriu à participação a data não era propícia, o período de debate foi limitado e a informação disponibilizada muito genérica. Por outro lado, a prioridade dada à oferta, através de barragens e vias de interligação, aparece mais vinculada à produção agrícola que ao abastecimento público, menosprezando o impacto das alterações climáticas para fortalecer um modelo que privilegia o regadio.

Notas

[1] República Portuguesa. XXIV Governo (2025-03-09). Governo lança estratégia a 15 anos para garantir resiliência hídrica. https://www.portugal.gov.pt/pt/gc24/comunicacao/noticia?i=governo-lanca-estrategia-a-15-anos-para-garantir-resiliencia-hidrica .  [Consult. 10 Março 2025].

[2] Sistema Nacional de Informação sobre Recursos Hídricos (2025). Boletim de Armazenamento nas Albufeiras de Portugal Continental. https://apambiente.pt/sites/default/files/_SNIAMB_Agua/DRH/MonitorizacaoAvaliacao/BoletimAlbufeiras/Semanal.pdf.  [Consult. 10 Março 2025].

[3] República Portuguesa (2025), Água que nos Une. Estratégia nacional para a gestão da água. https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3d%3dBQAAAB%2bLCAAAAAAABAAzNDExMwEAUSHgrgUAAAA%3d. [Consult. 10 Março 2025].

[4] Martins, Joaquim Poças e Godinho, Francisco (2023). Medidas sustentáveis para evitar a escassez de água em contexto de secas prolongadas. Conselho Nacional da Água. https://conselhonacionaldaagua.weebly.com/uploads/1/3/8/6/13869103/seca___escassez_cna_out_2023.pdf.[Consult. 10 Março 2025].

[5] Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) Governo apresenta Plano Água que Une, Março de 2025. https://www.cap.pt/noticias-cap/ambiente-e-agua/governo-apresenta-agua-que-une?fbclid=IwY2xjawJFTU5leHRuA2FlbQIxMQABHcF_XGJ-zhmgklnUV-aJLCkY0QZlPYpf3ahRqpDfuunRtU35os5QkdZHbA_aem_FAS00qulLO18fObhYsissQ. [Consult. 10 Março 2025].

[6] ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável (2025). Água que une – Algumas prioridades certas numa estratégia desequilibrada entre ambiente e agricultura. https://zero.ong/noticias/agua-que-une-algumas-prioridades-certas-numa-estrategia-desequilibrada-entre-ambiente-e-agricultura/  [Consult. 10 Março 2025].

[7] WWF Portugal. WWF Portugal alerta que estratégia “água que une” vai desviar da estratégia europeia. Março de 2025. https://www.natureza-portugal.org/conteudos2/noticias/?17509441/WWF-PORTUGAL-ALERTA-QUE-ESTRATGIA-GUA-QUE-UNE-VAI-DESVIAR-DA-ESTRATGIA-EUROPEIA. [Consult. 10 Março 2025].

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