Seca em Portugal: medidas para além do remedeio

Dimensão analítica: Ambiente, espaço e território

Título do artigo: Seca em Portugal: medidas para além do remedeio

Autor: José Gomes Ferreira

Filiação institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Norte

E-mail: josegomesufrn@gmail.com

Palavras-chave: Seca, Península Ibérica, alterações climáticas.

Depois da seca ibérica de 2017, e das secas europeias de 2018 e 2019, o aviso estava dado. Com o agravamento das alterações climáticas haverá impactos significativos na distribuição temporal e espacial do regime de chuvas e na ocorrência mais frequente de grandes secas, o que vai resultar no aumento de episódios de injustiça hídrica, de conflitos sociais, da perda de biodiversidade, da retracção da economia e concentração de poluição. Impõem-se políticas públicas mais dinâmicas, dialogadas, de visão integrada e de base territorial, e uma nova cultura da água que privilegie o recurso, os ecosssistemas e as pessoas. São necessárias soluções para além da mitigação e um rigoroso diagnóstico que realize uma ampla discussão de possíveis soluções.

As medidas de mitigação contra a seca que o Governo português avançou a 1 de Fevereiro de 2022 [1] ficaram aquém da dimensão do problema e da sua extensão temporal. Foram insuficientes, tardias e pontuais. O semáforo vermelho acendeu tardiamente na agenda das prioridades do Governo, mas já estava ligado na monitorização do SNIRH – Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos e do IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Desde o Verão de 2021 que o Boletim de Armazenamento nas Albufeiras de Portugal Continental do SNIRH [2] dava conta da existência de bacias hidrográficas com armazenamento de água deficitário. Em Outubro desse ano mostravam uma ligeira melhoria, porém, as bacias do Lima, Ave, Mira e, em particular, do Barlavento apresentavam resultados que em nada convergiam com o seu volume médio de armazenamento. Também o Instituto Português do Mar e da Atmosfera [3], através do Boletim Climático de Portugal Continental e da informação dedicada à Agricultura, tem mostrado que a humidade no solo não melhorou, em resultado da pouca precipitação acumulada e da subida média das temperaturas. O Inverno de 2021/2022 não trouxe a esperada chuva, pelo que a situação se agravou. E como do vizinho do lado não vinham boas notícias, em Fevereiro de 2022 Portugal e Espanha decidiram, em reunião da Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira (CADC), acompanhar mensalmente os caudais dos rios partilhados [4].

A 5 de Julho, quando era mais visível o agravamento, o Governo prometeu disponibilidade de água para consumo para dois anos [5] sem que nada se saiba sobre a evolução da evapotranspiração, das necessidades de água para combater os incêndios florestais ou da ocorrência de eventuais episódios de contaminação. Mais tarde ou mais cedo será necessário um reforço das medidas, podendo a escassez causar descontentamento das populações, dos agricultores, empresas e municípios. Não podemos hesitar quando se trata de implementar medidas realistas, em vez de se empurrar o problema para a frente à espera que o São Pedro resolva.

Tal como se tem visto no Sul da Europa e outras geografias, o momento é de mitigação, pelo que é necessária maior articulação com os municípios e utilizadores de água, sem esquecer o direito fundamental à água e a necessidade de respostas de médio e longo prazo. As respostas tradicionais são insuficientes e reactivas, precisamos de discutir alternativas para além das infra-estruturas de armazenamento, de soluções técnicas, da discussão sobre o uso sustentável da água, dos impactos na economia e dos caudais ibéricos. A abordagem a partir do nexo água, energia e alimentação apresenta-se desafiante como um exercício continuado de acompanhamento da performance de indicadores sobre os diversos usos da água.

Para se encarar de frente o problema precisamos de reinterpretar a água para além do ciclo hidrológico e das dimensões técnicas e balanços hídricos, implementando políticas com uma visão integrada e ecossistémica. É fundamental trazer a cidadania para a governança da água, não apenas de forma instrumental, mas com mais escuta, metodologias inovadoras e integração dos momentos participativos nas decisões, bem como uma visão holística e uma presença próxima dos territórios, de modo a cumprirem-se os objetivos da Directiva-Quadro da Água, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a resposta às alterações climáticas.

Como a água não cai apenas do céu, sugerem-se três opções: i) o restauro e regeneração dos ecossistemas hídricos e não hídricos com espécies nativas, para produzir chuva; ii) a redução da evaporação –  o tema não é debatido em Portugal, mas é importante levar-se em conta dadas as altas temperaturas e a perda de cobertura vegetal; iii) e o aproveitamento da água da chuva, tanto em lagoas de retenção, como em barragens subterrâneas ou cisternas. As cisternas de consumo e produção do semiárido brasileiro podem ter aplicação no semiárido ibérico em contextos rurais, aliviando os sistemas colectivos de fornecimento de água. Para contextos urbanos, a arquitectura moderna tem também encontrado soluções.

É preciso plantar água, o que passa por regenerar e fortalecer os ecossistemas, também para a recuperar a sua biodiversidade. É urgente reutilizar a água das Estações de Tratamento de Águas Residuais e apostar seriamente na economia circular da água. A dessalinização não deve ser colocada de parte, mas não pode ser prioridade sem se apostar em soluções menos onerosas. É igualmente urgente avançar com o nexo água, energia e alimentos, e com uma agricultura com adequação das culturas e sistemas de rega. Em suma, precisamos de eliminar todos os desperdícios e os focos de poluição; de recuperar os ecossistemas e de os renaturalizar; e de apostar em usos eticamente responsáveis e em processos de monitorização e participação.

Notas

[1] Governo da República Portuguesa (2022). «Em Portugal, a seca é estrutural». Disponível em https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=em-portugal-a-seca-e-estrutural. [Consult. 30 Junho 2022].

[2] Agência Portuguesa do Ambiente (2021). SNIRH – Boletim de Armazenamento nas Albufeiras de Portugal Continental. Disponível em https://snirh.apambiente.pt/index.php?idMain=1&idItem=1.3 [Consult. 30 Junho 2022].

[3] IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Agricultura. Disponível em https://www.ipma.pt/pt/index.html. [Consult. 06 Julho 2022].

[4] Portal Diplomático (10/02/2022). Portugal e Espanha debatem medidas no quadro do combate à seca. Disponível em: https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/comunicacao-e-media/comunciados-de-imprensa/portugal-e-espanha-debatem-medidas-no-quadro-do-combate-a-seca [Consult. 06 Julho 2022].

[5 Diário de Notícias (05/07/2022)). “Seca. Governo garante água para consumo humano nos próximos dois anos.  Disponível em: https://www.dn.pt/sociedade/seca-governo-garante-agua-para-consumo-humano-nos-proximos-dois-anos–14994283.html. [Consult. 06 Julho 2022].

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