Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território
Título do artigo: Despoluição da bacia hidrográfica do rio Lis. Cronologia de uma política adiada
Autor: José Gomes Ferreira
Filiação institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
E-mail: josegomesufrn@gmail.com
Palavras-chave: Despoluição, suiniculturas, descontinuidade das políticas públicas.
O início do ano 2021 aparece marcado pela divergência entre o governo e a Recilis, empresa que representa os suinicultores da região de Leiria. Mostramos em 2012 [1] que o conflito é recorrente e acaba no ziguezague das políticas de despoluição da bacia hidrográfica do rio Lis. Nesta reflexão, argumentamos que era previsível o recuo do Governo no apoio à construção da Estação de Tratamento de Efluentes Suinícolas (ETES) em consequência do protelar da construção pela Recilis daquele equipamento. O governo procurou alternativas sectoriais e nacionais, não especificamente ajustadas à região, com destaque para a inclusão da AdP Energias na solução nacional e para a nova Estratégia Nacional para os Efluentes Agropecuários e Agroindustriais – ENEAPAI 2030 [2].
A poluição com origem nas suiniculturas instaladas na bacia do Lis ganhou destaque a partir do início da década de 1970, primeiro no rio Lena. Na mesma década, foi instalada a montante da localidade dos Milagres a primeira suinicultura do país de ciclo completo, cujo sucesso levou pequenos agricultores locais a imitarem o modelo, mas com menos meios e sem preocupações ambientais. A proliferação de suiniculturas teve o apoio tácito do poder político, que aceitou o argumento da importância económica do sector na criação de emprego. A poluição da ribeira dos Milagres transformou-se em ícone da poluição hídrica nacional como resultado de sucessivas descargas que não acarretaram consequências para os infractores.
O Plano de Despoluição que deveria ser aprovado em 1997 não obteve financiamento. O Governo criou, no final de 1999, a empresa multimunicipal Simlis – Saneamento Integrado dos Municípios do Lis, S. A., actualmente integrada nas Águas do Centro Litoral, para encontrar soluções para os esgotos domésticos. A poluição com origem nas centenas de suiniculturas não se enquadrou nessa solução, pelo que ficou sem alternativas políticas e técnicas. Na década de 1990, a Associação de Suinicultores de Leiria obteve apoio financeiro para a construção de duas estações de tratamento, que nada resolveram, pois foram construídas sem uma visão abrangente, sem parcerias, sem soluções tecnológicas adequadas e sem integração numa estratégia nacional.
Em 2003, o ministro do Ambiente Amílcar Theias forçou a criação da empresa Recilis, que, liderada pelo empresário David Neves, tinha como responsabilidade resolver o problema ambiental provocado pelas suiniculturas da região. Em Janeiro de 2006, a Recilis e a Simlis apresentaram como solução a construção de uma ETES na freguesia de Amor. Apesar de a localização ser contestada, os estudos avançaram e a infraestrutura obteve Declaração de Impacto Ambiental favorável em Maio de 2008. No período de transição o governo atribuiu aos suinicultores licenças de descarga controlada em meio hídrico e no solo. Após a inauguração, em 2009, da Estação de Tratamento de Águas Residuais situada no Coimbrão, a ETAR Norte, esta iniciou gradualmente o tratamento de efluentes suinícolas.
A construção da ETES seguiu com dificuldades, sobretudo por dificuldade da Recilis em encontrar parcerias para a construção e futura gestão. Em Junho de 2013, o Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território aprovou a obra como Projecto de Interesse Nacional. Foi assinado o protocolo para a construção e exploração da ETES, orçada em 20 milhões de euros, envolvendo o ministério, a Simlis, as autarquias da Batalha, Porto de Mós e Leiria, e as entidades promotoras, ou seja, a Recilis, a chinesa Be Water (que substituiu a desistente Fomentinvest na parceria com a Recilis) e a Luságua. Em Agosto de 2015, a Valoragudo, detida a 100% pela Recilis, lançou o concurso público internacional para a construção da obra. Perante a ausência de avanços, em Maio de 2017 a Autoridade de Gestão do Programa de Desenvolvimento Rural 2020 informou que a Recilis perdeu o financiamento por incumprimento dos requisitos do acordo.
Perante o retrocesso, em Setembro de 2017, o Partido Ecologista Os Verdes apresentou na Assembleia da República o Projeto de Resolução n.º 1031/XIII2, recomendando ao Governo que tomasse medidas para resolver a poluição da bacia do rio Lis. A proposta foi aprovada em Julho de 2019, através da Resolução n.º 169/2019, da Assembleia da República, que recomenda urgência na articulação com os agentes locais e que fosse dada sequência à revisão da Estratégia Nacional para os Efluentes Agropecuários e Agroindustriais (ENEAPAI) [2]. Foi também na Assembleia da República que, em Dezembro de 2020, o Partido Social Democrata apresentou o Projeto de Resolução 790/XIV, recomendando ao Governo a construção da ETES. Os subscritores estranham a ausência do projeto de despoluição da bacia do Lis na ENEAPAI 2030. Considerando não serem necessários mais estudos, solicitam acesso aos estudos realizados pela AdP Energia Renováveis e Serviços Ambientais S.A.
O grupo AdP entrou no processo após publicação do Despacho nº 6312/2019, de 10 de Julho de 2019, através do qual o Governo encarregou a AdP Energia Renováveis e Serviços Ambientais S.A. de estudar e apontar uma solução de recolha, tratamento e valorização dos efluentes para o território nacional. O Despacho identifica a empresa pública como futura concessionária da exploração e gestão do sistema integrado de tratamento e valorização dos efluentes agropecuários e agroindustriais. Esse foi mais um revês no protagonismo da Recilis e na especificidade regional da poluição. Também a ENEAPAI 2030 [2] procura soluções que vão para além da bacia do Lis. Reconhece o seu potencial poluidor, mas não define soluções específicas. Dá primazia à valorização agrícola dos efluentes pecuários para o território nacional, uma prática da qual a bacia do Lis já se encontra saturada.
A construção da ETES foi abandonada em Dezembro de 2020, primeiro com o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, a declarar que “não há maturidade de relação com os suinicultores que justifique a construção de uma obra pública” e que existem infraestruturas alternativas em funcionamento [3]. Nos dias seguintes verificaram-se declarações da Ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, reafirmando a mudança de paradigma e o cancelamento da construção da ETES.
Reconhecendo a importância de se trabalhar a ligação do mundo animal ao vegetal, como vimos a partir de Frederick H. Buttel [1], e de se promover a economia circular, não podemos ignorar que a bacia do Lis se enquadra no que Henri Acselrad chama áreas de sacrífico [4]. Os seus terrenos e cursos de água não comportam mais poluição, assim como as populações. Os argumentos do sector suinícola relativos ao seu contributo para a criação de emprego e para o PIB são muitos fortes. A visibilidade mediática e o ruído político têm sido insuficientes para despoluir a bacia do Lis, sendo por vezes usados em proveito próprio. Assim, este caso continuará a marcar a poluição hídrica nacional.
Notas
[1] Ferreira, J. G. (2016). Saneamento básico. Factores sociais no insucesso da despoluição da bacia do rio Lis. Saarbrücken: Novas Edições Académicas.
[2] Ministério do Ambiente e Acção Climática e Ministério da Agricultura. Estratégia Nacional para os Efluentes Agropecuários e Agroindustriais – ENEAPAI 2030. https://participa.pt/contents/consultationdocument/ENEAPAI_2030.pdf
[3] Governo não vai construir estação de tratamento (ETES) para mitigar poluição pelas suiniculturas. Jornal de Leiria, 31 de Dezembro de 2020. https://www.jornaldeleiria.pt/noticia/governo-nao-vai-construir-estacao-de-tratamento-etes-para-mitigar-poluicao-pelas-suiniculturas
[4] Acselrad, H. (2015). Vulnerabilidade social, conflitos ambientais e regulação urbana. O social em Questão, (33), 57-67.
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