O desporto como modelador social e individual

Dimensão analítica: Saúde e Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: O desporto como modelador social e individual

Autor: José Augusto Rodrigues dos Santos

Filiação institucional: Faculdade de Desporto – Universidade do Porto

E-mail: jaugusto@fade.up.pt

Palavras-chave: desporto, individualismo, sociedade.

A atual crise epidemiológica acrescenta-se à crise global que desde há muito afeta as relações entre países e que podemos sumariar nos pontos de fratura mais evidentes: (i) redução da importância dos USA como potência geoestratégica, (ii) a emergência da China como potência plural com perigosos pontos de choque com os países limítrofes, (iii) o terrorismo islâmico, (iv) a fome endémica em muitos países, (v) as reivindicações territoriais regionais e, acima de todos os outros fatores (vi) o descontrolo demográfico que cria exércitos de indigência que podem fazer perigar a estabilidade social em muitos países do mundo.

A atual crise global impõe uma discussão axiológica se não queremos que o mundo descambe num beco sem saída niilista em que o humano seja um fator despiciendo. Temos de procurar e reinventar o humano no meio da selva indiferenciada em que hoje se tornou o mundo. Popper avisa-nos que vivemos no melhor mundo de sempre. Talvez, mas pouco humano é esse mundo quando viajar para certos países se assemelha a uma roleta russa da qual poderemos sair com vida por mero acaso.

Entre as várias forças-tampão que ainda hoje permitem alguma atenuação das tensões globais no mundo salienta-se o desporto. Esta aventura do desporto como modelador de convivialidade começou há muito tempo.

Na Antiga Grécia emergiram as bases fundacionais da civilização ocidental que se ramificaram na filosofia, arte, justiça, ciência, religião e desporto. No século VIII antes da era cristã, no planalto de Olímpia, aconteceu a primeira prova desportiva documentada, uma corrida de estádio, que integrava as cerimónias religiosas em honra de Zeus. O desporto nasceu como forma de glorificar os deuses e foi-se transformando numa atividade humana cada vez mais pregnante e indissociável do progresso social e humano que caracteriza as sociedades hodiernas.  É um território por excelência axiológico não porque seja diferente dos outros territórios humanos, mas porque catalisa de uma forma mais relevante o potencial emocional humano.

Salienta-se, em relação ao Jogos Olímpicos da Antiguidade, o estabelecimento da Trégua Sagrada, que parava as guerras entre as várias cidades-estado e permitia a realização dos jogos.

O desporto, seja qual for a sociedade, para além de ser um território de excessos, catalisador da procura incessante dos limites do humano, será sempre um território de valores, consubstanciando uma ética existencial que é apanágio de poucos. Para melhor estruturar o que quero dizer permito-me uma viagem egoísta.

Um dos meus amigos mais chegados mandou-me esta frase do Miguel Torga – “Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu, é transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma”. Concluía afirmando: – “Tu foste campeão da tua casa, da tua rua, do teu bairro, da tua cidade, do teu país, do mundo e depois acabarás por ser campeão de coisa nenhuma. Aí morrerás em paz”.

Respondi-lhe entusiasmado: Frase fantástica do Torga. Esta frase consubstancia a minha atual filosofia no referente ao desporto que faço. Treino todos os dias. Hoje, às 6h30 levantei-me para ir treinar para o rio. Fui de bicicleta até ao Areinho onde se situa o posto náutico em dois contentores pois o posto náutico onde nasceu a canoagem portuguesa foi vendido a tasqueiros. Por que razão continuo neste afã para não chegar a lado nenhum? Porque o meu desporto presente, embora repleto de entrega e sortilégio, de fruição calma e prazer estético, de regresso à natureza e ao mais íntimo de mim, tem como único leitmotiv dar continuidade àquilo que fui. Não se pode ter sido desportista de elite, e eu fui-o nos limites das minhas capacidades, e deitar tudo para trás das costas como se aquilo fosse um mero apêndice vivencial. Não, para mim o desporto não foi, não é, um complemento existencial; o desporto é-me na totalidade do meu ser.

Esta conceção do desporto como uma ética e uma estética pessoal, muito pessoal mesmo, é uma das características mais fortes que marca o desporto nos tempos que atravessamos. A última década viu o desporto perder algo da sua dimensão agregadora, digamos social e passou a ser fortemente marcado pela expressão individual.

Hoje em dia, o desporto não é só uma forma de estar com o outro, mas essencialmente uma forma de estar consigo próprio. Ventos dos tempos conturbados que vivemos e que exacerbam o individualismo. A ultrapassagem do modernismo, rejeitando a tradição que tentava subordinar o individual ao coletivo, desembocou no pós-modernismo, cuja principal característica é a destruição da norma, do cânone estético, e a emergência revolucionária do primado do individual. O pós-modernismo viu emergir a poesia sem métrica e sem rima, a pintura abstrata aberta a mil interpretações, os romances sem narrativa e o indivíduo pretensamente liberto dos constrangimentos do coletivo.

O desporto atual é uma resultante pós-moderna da dissolução do apelo gregário e a afirmação do indivíduo como valor central de toda a sociedade. A sociedade não é mais o conjunto de indivíduos, mas o somatório de individualidades, refratárias a qualquer cedência ao sentir coletivo. Na base desta transformação está o apelo à liberdade, hoje em dia, um dos imperativos éticos mais determinantes. O direito à liberdade, em teoria ilimitado, mas antes circunscrito à economia, à política, ao conhecimento, com o pós-modernismo conquista os costumes, o prosaico do quotidiano. Viver livre e sem coações, escolher sem restrições o seu modo de existência. O processo de personalização conduz à superação de uma identidade universal e a busca de uma identidade própria expressa em coisas tão diversas como a libertação dos costumes e da sexualidade, reivindicações das minorias regionais e linguísticas, tecnologias da mente, desejo de expressão e de realização do Eu que desemboca forçosamente no narcisismo.

O desporto pós-moderno é fundamentalmente narcísico. O desporto atual viu o indivíduo eleger-se a Píndaro com as asas coladas de alguma irrealidade, que o pode fazer cair em espirais de desistência, mas que sem dúvida o permite voar como nunca dantes.

Cada indivíduo observa-se, testa-se, vira-se mais para si próprio à procura da sua própria verdade e do seu bem-estar, tornando-se responsável pela sua vida, devendo gerir o melhor possível o seu capital estético, afetivo, físico, libidinal, moral, cultural, etc., e a procura dos seus limites físicos através do desporto.

Hoje, o desporto está dessacralizado, des-psicologizado, des-emocionado. Está calmo e assim deve continuar. Hoje, personalização, hedonismo, narcisismo e egocentrismo contaminam, pela positiva e pela negativa, o tecido cultural com que nos vestimos. Não há dimensões sociais estanques a este vento renovador. No desporto nota-se mais porque está muito mais mediatizado.

Ao fugir dos dogmas religiosos, ou reduzindo-lhes a força imanente, o indivíduo tem maior domínio sobre a sua vida e as opções pessoais estão contaminadas por essa sensação gratificante de domínio sobre o envolvimento e fundamentalmente de si próprio. No seio deste desporto focado no indivíduo subsistem, no entanto, algumas pulsões gregárias que importa fortificar. Mesmo quando me comprazo na fruição do “meu” desporto consigo olhar o outro, o desporto do outro, como fator complementar da minha própria existencialidade.

É esse o sortilégio do desporto. Mesmo em tempos de afastamento e personalização narcisista o desporto continua a funcionar como fator de agregação e convivialidade.

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