Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: Teatro Amador em Portugal
Autor: Ricardo Manuel Ferreira de Almeida
Filiação institucional: Sociólogo
E-mail: ricardomfa@hotmail.com
Palavras-chave: teatro, teatro amador, espectáculos.
No domínio do teatro amador possuímos informação muito dispersa e rarefeita, de deficiente qualidade e recolha inquinada, em nítido contraste com o que conhecemos relativamente ao teatro “institucionalizado”, beneficiário do grosso dos subsídios públicos. Antes de mais, é útil dizer que os espectáculos ao vivo têm vindo a aumentar de forma contínua há mais de uma década, acompanhando a disponibilidade orçamental destinada ao sector e os investimentos, público e privado, na esfera da ocupação dos tempos livres, em linha com o desfecho do processo de transformação do país após a sua adesão à Comunidade Europeia, facto que motivou o consequente reforço deste género de sociabilidades e estimulou a vitalidade do mercado. Não obstante, no âmbito do teatro, desde a década de setenta do século passado até ao início de 2000 que o número de espectadores regista uma queda contínua, assinalando os valores mais baixos por volta de 1993. Estes oscilam entre o quase milhão e meio de espectadores na década de sessenta do século passado e os 190 mil espectadores no ano de 1993. Em contrapartida, entre 1960 e 2000, os espectáculos de teatro variaram entre as 2500 e as 4000 sessões, com um aumento brusco a partir do ano de 2000 para valores nunca antes registados, atingindo um pico de cerca de 13.000 sessões em 2008. Quanto aos espectadores, esses registaram um valor na ordem dos dois milhões em 2010. Assim, se entre 1960 e 1980 havia muito público a frequentar as salas de teatro, os vinte anos subsequentes até 2000 notam o seu afastamento destes recintos, altura em que sessões e espectadores voltam a aumentar, fazendo crer que o público regressa ao teatro, recria hábitos, esgota salas, acompanha os grupos velhos e os novos e as suas propostas artísticas.
Estes são alguns dos dados que podem ser colhidos e analisados facilmente se apelarmos à produção das fontes oficiais, úteis para observar as dinâmicas sociais, as tipologias de consumo, o acesso e participação em eventos de fruição colectiva. Mas, e o teatro amador? São escassos os elementos existentes neste âmbito, provocado pela aparente desatenção e tratamento desconsiderado relativo a esta dimensão artística. Em todo o caso, a Fundação INATEL informa, laconicamente, que atribuiu cerca de três milhões de euros em apoios aos seus órgãos associados, sem os descrever, sem pormenorizar a divisão das verbas, sem pesar a sua aplicação, numa nebulosa postura que cerceia a quantificação e ponderação das dinâmicas geradas pelos inúmeros grupos de teatro amador existentes no país.
Observado como uma dimensão do popular, o teatro amador é considerado de forma eloquente e em acordo com uma visão patrimonialista, mas afasta-se e é afastado dos territórios da estética institucionalizada. Ocasionalmente, ajusta-se o popular a uma visão considerada estética, mas este permanece numa rede subalterna à oficial: a história comprova que o povo raramente se afirmou porque os seus canais não são acreditados. Aquele que existe, da INATEL, vive à parte e ainda sob uma lógica decalcada da extinta Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, encontra-se em crise, após momentos de fulgor prévios à decisão dos municípios apoiarem com maior expressividade as actividades culturais locais, atitude que conta com cerca de duas décadas de vida: se conferirmos algumas actas de tomada de posse de antigos elencos camarários, o pelouro da cultura não existia e, em grande parte dos municípios, foi forçado a surgir por imposições sociais das populações e do crescente valor dos discursos em torno do assunto da cultura como bem público, canalizando, localmente, verbas de apoio a instituições. Identicamente, as consecutivas mudanças de tutela entre os sucessivos Ministérios da Cultura e Secretarias de Estado da Cultura mostram-nos que o tema não assume lugar importante no conjunto das políticas públicas. Com o país em suposta crise, os novos poderes optam por olhar para a cultura e ocupação dos tempos livres como território dos grandes espaços comerciais, cinemas, jogos de futebol, entre outros, e o teatro em geral e o amador em particular, sofrem, penalizando as sociabilidades construídas ao seu redor. As feridas são profundas, em ambos os casos, mas os grupos resistem porque a sua prática se encontra sedimentada nas estruturas sociais afectas ao milenar “faz de conta”.
Verificamos que o papel do INATEL é impulsionar as referidas companhias de teatro amador no campo financeiro, logístico e formativo, tal como o faz a Federação Nacional de Teatro, antiga Associação Nacional de Teatro Amador, na perspectiva de elaborarem um produto artístico suficientemente desligado do seu aspecto artesanal, o que denota uma reflexão sobre a diversidade e aspecto das respostas produzidas. Mas o choque permanece e as dimensões, amadora e profissional, colidem entre si, suportadas por lógicas de acção distintas. É como se existisse um conjunto hierarquizado, valorativo e político de produções legítimas realizadas sobre sucessivos níveis e os grupos de teatro amador deambulassem pelos interstícios das classificações, mostrando uma cara agradável para contentar mas remetendo-se aos processos socializados nas práticas e na memória.
Há, todavia, muitas coisas positivas para falar sobre o teatro amador, pois é um próspero campo de pesquisa. Nele se confrontam agentes que confessam nas suas práticas mapas cognitivos próprios, produto de socializações específicas a que a influência das lógicas de acção herdadas das políticas culturais e educativas do Estado Novo não são estranhas, podendo ser enquadrado à soleira de dois conceitos-chave: o habitus [1] e a construção cinomórfica [2], herdeiros, a montante, de uma longa tradição fenomenológica interpretativa do mundo social e, a jusante, indutores de possibilidades de investigação sociológica, como a potencial etnocenologia [3] pode ser.
Notas
[1] Bourdieu, Pierre (1990) “La Domination Masculine” in Actes de la recherche en Sciences Sociales nº 84; Bourdieu, Pierre (2000) Esquisse d’une Théorie de la Pratique, Paris, Editions du Seuil.
[2] Birdwhistell, Ray (1970) Kinesics and Context: Essays in Body Motion Comunication, Pennsylvania Press.
[3] Dubois, Jérôme (2007) La Mise en Scéne du Corps Social, Paris, L’Harmattan.
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