Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: Superdiversidade ou individualização líquida?
Autor: Nuno Oliveira
Filiação institucional: CIES ISCTE-IUL
E-mail: filicastrol@gmail.com ; nuno.filipe.oliveira@iscte.pt
Palavras-chave: superdiversidade, individualização, modernidade líquida.
Falar de multiculturalismo não define actualmente nenhum posicionamento político, como em tempos se reivindicou através deste conceito elusivo [1], mas é apenas uma convenção para designar uma sociedade onde a pluralidade cultural é aceite. Despojado do seu momento político, o multiculturalismo tornou-se um termo descritivo, intercambiável, conforme o eixo teórico donde se fala, com expressões como pluralismo, interculturalidade ou superdiversidade. Sem dúvida que esta translação semântica e lexical assinala mudanças sociais e estruturais que estão longe de ser despiciendas. Uma delas prende-se directamente com o processo de erosão crítico de que o multiculturalismo foi alvo [2]. Uma ideia que tem sido bastante contestada e que sustentou grande parte das linguagens de integração e dos movimentos sociais é que não podemos ver a diversidade cultural enquanto relações entre culturas delimitadas nem tão-pouco entre grupos étnicos. Devemos sim atentar nos processos de identificação. Este postulado tem por base uma revisão tanto do conceito de cultura como de identidade. Em traços muito gerais, para a cultura e o étnico ele coloca o problema das disjunções entre local e apropriações e usos dessa mesma cultura. Esta deslocação, ou o desencarnar, entre a cultura e o local cujo ajustamento era em grande medida o fundamento do étnico – a associação entre um conjunto de símbolos e uma territorialidade a qual esses símbolos pertenciam intrinsecamente. Em condições de modernidade líquida e de disseminação de símbolos culturais pelos diversos fluxos de cultura e capital dá-se um desenraizamento do étnico que deixa de funcionar como segunda natureza. Nesse sentido também a identidade é problematizada, na medida em que deixamos de ter identidades fixas e passamos a ter identidades negociadas, daí ser mais correcto falar de identificações e processos de identificação. Neste quadro, o multiculturalismo reconheceria diferenças entre culturas onde apenas deveria observar um conjunto de relações entre processos de identificação.
Esta crítica possui igualmente um respaldo escalar, ou seja, ela sublinha a impossibilidade de definir relações culturais sem ter em conta a escala da sua observação. A equação demasiado nivelada e directa entre uma cultura e uma origem – designadamente um Estado-nação – estilhaçou-se nas práticas sociais concretas da vida líquida e globalizada [3]. Todavia, essa configuração, melhor dizendo, essa formatação cultural possui instanciações que não são menosprezáveis – uma delas o relapso discurso nacionalista, como observei em texto anterior [4]. Não obstante, nesta consideração dos impactes multiescalares a cidade ganhou uma proeminência que não possuía anteriormente. As cidades enquanto locus de incidência da intensificação das dinâmicas da globalização assumem progressivamente o lugar de incorporação da diferença cultural [5].
Estas duas linhas remetem para a constatação de que os espaços urbanos actuais encerram uma diversidade qualitativa e quantitativamente diferente. Uma diversidade complexificada que não segue os antigos padrões de integração da diferença, nem os seus moldes tradicionalmente nacionais. Trata-se de uma diversidade transnacional, mas que é, não obstante, localizada em espaços urbanos específicos. A complexificação da diversidade levou Vertovec a descobrir um fenómeno novo nos bairros e no espaço público ao qual designou por superdiversidade. Esta categoria analítica visa dar sentido teórico à diversidade complexificada que não corresponde mais aos parâmetros propostos pela Escola de Chicago. Segundo Vertovec, não deparamos mais com uma realidade descritiva e passível de ser circunscrita a grupos nas suas inter-relações, mas antes a uma “diversificação da diversidade” diversificação essa que resultaria não apenas da heterogeneidade das origens nacionais e étnicas, mas também de uma multiplicidade de fatores que afetariam “onde, como e com quem as pessoas vivem” [6]. Neste quadro, a homogeneidade da imigração laboral estaria a ser substituída pelas múltiplas pertenças e estatutos de uma imigração à escala global. Ora, estes fluxos migratórios diferenciam-se dos anteriores pela sua heterogeneidade em termos de género, idade, estatuto social e legal, perfil profissional, capital humano, onde o étnico e o cultural não desempenham nenhum papel preponderante [7].
A questão central é a seguinte: se a superdiversidade recobre – não evidenciando uma especificação analítica maior -, qualquer dimensão da vida social, por que razão aplicar o conceito apenas no caso dos imigrantes e dos seus descendentes? O conceito de superdiversidade pode, em última análise, incorporar qualquer dimensão diferenciadora. Vertovec sugere o estatuto legal, género, lugar de residência, etc, naquilo que se afigura como uma selecção a priori das dimensões significativas. Mas como se justifica a sua circunscrição a este leque de dimensões? Com efeito, poderíamos chegar mesmo a considerar a superdiversidade como a condição individual da modernidade líquida e dos seus cenários quotidianos. Através das conexões na internet, comunicando com pessoas de diferentes culturas, envolvendo-se em redes sociais culturalmente diversas ou processando cognitivamente um stock de imagens, sons e memórias, a vida quotidiana do sujeito da modernidade líquida é inerentemente “super-diversa”. Neste quadro, interrogamo-nos por que razão o conceito de superdiversidade se aplica em particular à condição de migrante e aos espaços onde migrantes e autóctones se cruzam. A superdiversidade enquanto combinação de uma panóplia de características sociais pode, hipoteticamente, ser alargada a todas as categorias sociais que façam sentido no processo de decomposição do social nas suas diferentes dimensões. Uma combinação particular destas categorias estabelece a singularidade do indivíduo singular (acentuando o pleonasmo). Neste sentido, será o conceito de superdiversidade um artifício semântico que significa individualização? E em que medida o simples facto da diferenciação das origens e dos destinos dos imigrantes se traduz numa desnaturalização da cultura, mormente quando a primeira pode ainda ser equacionada com a intersecção entre as divisões de classe, etnicidade, género e raciais no interior do Estado e dos sentimentos étnicos e nacionalistas que ele (ainda) articula [8]? Por outras palavras, não convirá ainda assim opor a noção de superdiversidade – dispersão líquida do étnico – à de interseccionalidade: intersecção do étnico com outras diferenças categoriais possuidoras de significado social e passíveis de posicionar os indivíduos num contexto de diferenciação em relação a outros grupos ou outras partições sociais?
Notas
[1] Por exemplo o multiculturalismo crítico de McLaren. Ver McLaren, P (1994) “White Terror and Oppositional Agency: Towards a Critical Multiculturalism.” in D. T. Goldberg ed., Multiculturalism: A Critical Reader, Oxford and Cambridge: Blackwell, pp. 45-74.
[2] Vertovec, Steven e Susan Wessendorf eds. (2010) The multiculturalism backlash. European discourses, policies and practices, London: Routledge.
[3] Bauman, Zigmunt (2000) Liquid Modernity, London: Polity.
[4] Oliveira, Nuno (2012) “O nacionalismo étnico redivivo”, in Barómetro Social, Universidade do Porto, 5 de Dezembro, publicação online.
[5] Sassen, Saskia (1991) The Global City, Princeton, NJ : Princeton University Press.
[6] Vertovec, Steven (2006) “The emergence of super-diversity in Britain”, WP 25, Oxford, COMPAS.
[7] Vertovec S. (2007). New Complexities of Cohesion in Britain, London: Communities and Local Government Publications.
[8] Yuval-Davis, N. (2011) The Politics of Belonging. Intersectional Contestations,
London: Sage.
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