O estudo da criminalidade dos estrangeiros e grupos étnicos em Portugal

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: O estudo da criminalidade dos estrangeiros e grupos étnicos em Portugal

Autora: Sílvia Gomes

Filiação institucional: Centro de Investigação em Ciências Sociais (Universidade do Minho) e Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento (Instituto Universitário da Maia)

E-mail: silvia.gomes@ics.uminho.pt

Palavras-chave: Criminalidade, Grupos étnicos, Estatísticas criminais.

O estudo da criminalidade dos estrangeiros e grupos étnicos em Portugal oferece alguns obstáculos, quer às instituições oficiais do Estado, quer aos académicos. A Constituição Portuguesa impede qualquer registo direto ou indireto por parte do Estado de dados sobre raça e/ou etnia [1] de forma a não reforçar estereótipos ou a racialização da sociedade [2] [3]. Este facto não é exclusivo de Portugal e outros países europeus têm disposições legais semelhantes. Para além de não reconhecer etnias, as estatísticas publicamente disponíveis sobre a criminalidade em Portugal incluem apenas as categorias genéricas de nacionais e “estrangeiros”.

As estatísticas oficiais do crime em Portugal são pouco estudadas e oferecem pouco potencial para a análise, quando comparado com outros países da UE. Por um lado, as estatísticas oficiais portuguesas da criminalidade não cruzam dados de diferentes organismos [4], não permitindo dessa forma que possa haver uma análise concertada das estatísticas. Por outro lado, registam apenas a nacionalidade dos “criminosos” e não a etnicidade ou o fenótipo, o que faz com que a existência de grupos étnicos não seja formalmente reconhecida pelo Estado, que reconhece apenas cidadãos. E, para além de não reconhecer etnias, as estatísticas relativas à criminalidade só tem a categoria de estrangeiros, sem distinguir entre residentes – quer documentados, quer não documentados – ou visitantes.

Compreende-se, assim, que os estudos em Portugal que tentem trabalhar as questões da criminalidade, relacionando-a com grupos étnicos, estrangeiros ou imigrantes, tenham que fazer opções de forma a delimitar conceptualmente a população em estudo e definir igualmente a forma como chega a essa população. No âmbito dos estudos realizados em território nacional, têm prevalecido estudos de ordem quantitativa quando mais relevante é o tratamento e a análise da criminalidade entre estrangeiros, proporcionando uma análise mais ampla, mas com menos nuances do crime em Portugal; e estudos de ordem mais qualitativa quando se trata de analisar a criminalidade nas etnias, facultando uma imagem da criminalidade em profundidade, mas muito mais micro e localizada.

No projeto de doutoramento que desenvolvi entre 2009 e 2013, tive como objetivo central contribuir para o estudo do crime quando relacionado com grupos estrangeiros e étnicos em Portugal, designadamente indivíduos estrangeiros dos PALOP e da Europa de Leste e nos indivíduos portugueses-ciganos [5].

De uma forma sintética, deste estudo foi possível concluir que o sistema de justiça criminal parece penalizar ou selecionar a população que reclui, com base na sua etnia/nacionalidade, bem como na sua posição objetiva de vida, que inclui variáveis de género e de classe. Além disso, a análise do significado atribuído pelos atores aos seus percursos de vida revelou que os crimes são efeitos conjugados de situações de desigualdade e processos de exclusão social, para os quais contribuem os preconceitos e estereótipos, assim como formas de racismo institucional e quotidiano. Tais situações e processos podem, por um lado, espoletar comportamentos desviantes nestes grupos sociais, e, por outro lado, levar ao aumento do policiamento nas áreas geográficas onde estes grupos sociais se encontram, que por sua vez pode conduzir a detenções, condenações e reclusão.

Para além da partilha de percursos marcados por exclusões e desigualdades várias por parte destes grupos sociais, elas são alternadas ao longo dos seus trajetos, consoante o rótulo e tratamento específico que lhes é dado enquanto imigrante, estrangeiro ou cigano. Assim, no caso dos grupos de reclusos estudados foi possível unir, transversalmente e para efeitos analíticos, diferentes trajetórias: (i) imigrantes laborais, (ii) imigrantes em idades escolares, (iii) estrangeiros nascidos em Portugal, (iv) imigrantes “auxiliados”, (v) “correios de droga” e (vi) indivíduos de etnia cigana.

Posto isto, considero essencial que em Portugal se deva romper com o pensamento conservador atual sobre as estatísticas, pensamento este que entende o registo das características étnicas e migratórias como uma forma de demonizar determinados grupos sociais desfavorecidos. Antes pelo contrário, as estatísticas detalhadas e confiáveis sobre etnicidade e migrações são indispensáveis tanto para evidenciar as circunstâncias de discriminação sistemática, onde elas existem, como para provocar uma mudança social.

Ainda que as etnias sejam invisíveis nas estatísticas, elas não são invisíveis dentro dos estabelecimentos prisionais portugueses. O fracasso na recolha de determinado tipo de dados resulta, efetivamente, no silenciamento de certas evidências sociais, o que considero ser contraproducente nos esforços desenvolvidos para tentar solucionar problemas estruturantes na sociedade – como a questão das desigualdades e exclusões sociais associadas a determinados grupos sociais.

Não quero com isto dizer que as estatísticas sobre o crime contam a história da criminalidade na sua globalidade, porque não contam. No entanto, mesmo que as estatísticas criminais apenas reflitam a atividade das agências de controlo social do que o real envolvimento criminal dos indivíduos, elas não devem ser ignoradas, pois elas contam pelo menos uma parte da história criminal [6]. Uma história que tem interesse em ser estudada e que pode desconstruir alguns preconceitos e estereótipos e evidenciar processos de marginalização social [7].

Notas

[1] Ver Decreto-Lei 28/94.

[2] Cabecinhas, Rosa (2007), Preto e Branco: a naturalização da discriminação racial, Porto: Campo das Letras.

[3] Cunha, Manuela Ivone (2010), Race, Crime and Criminal Justice in Portugal, In Anita Kalunta-Crumpton (Ed.) – Race, Crime And Criminal Justice: Internacional Perspectives, New York: Palgrave MacMillan, pp. 144-161.

[4] Seabra, Hugo Martinez; Santos, Tiago (2005), A criminalidade de estrangeiros em Portugal: um inquérito científico, Lisboa: Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas.

[5] Gomes, Sílvia (2013), Criminalidade, etnicidade e desigualdades análise comparativa entre os grupos nacionais dos PALOP e Leste Europeu e o grupo étnico cigano, Tese de Doutoramento em Sociologia, Braga: Universidade do Minho. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/25413.

[6] Marshall, Ineke Haen (1997), Minorities and Crime in Europe and the United Sates: More Similar than Different!, In I. H. Marshall (Ed.) – Minorities, Migrants, and Crime: Diversity and Similarity Across Europe and the United States, Sage Publications, pp. 224-243.

[7] Gomes, Sílvia (2014), Foreigners and Ethnic Groups in Prison: Some Reflections from Portugal. Disponível em: http://bordercriminologies.law.ox.ac.uk/crimedata-portugal.

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