Rendimentos e inclusão financeira: comportamentos e orientações de frações de classe média

Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: Rendimentos e inclusão financeira: comportamentos e orientações de frações de classe média

Autora: Rosário Mauritti

Filiação institucional: Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL, CIES-IUL

E-mail: rosario.mauritti@iscte.pt

Palavras-chave: rendimentos; literacia financeira; classe média.

O presente texto dá continuidade a uma apresentação sintética dos dados do Inquérito aos Rendimentos e Consumos das Famílias de Classe Média em Portugal, promovido pelo CIES-IUL no último trimestre de 2012 [1].

Análises anteriores deram enfase a traços estruturais de forte diferenciação do conjunto aqui em referência, com posicionamentos sociais demarcados muito favoravelmente, na comparação com a sociedade portuguesa, tanto no plano material como no simbólico. Esses traços distintivos não impedem porém que, nas apreciações gerais sobre o seu bem-estar e qualidade de vida, estes indivíduos e famílias evidenciem algum retraimento e reconfiguração de estilos de vida, seja relativamente a consumos básicos quotidianos, seja nas sociabilidades, lazeres e práticas culturais ou ainda nas orientações face ao futuro [2].

Os dados que agora apresento, convergentes, de resto, com a caracterização dos perfis socioprofissionais e qualificacionais já desenvolvida, destacam neste segmento orientações de forte inclusão financeira. Patentes nas relações diversificadas que mantêm com a banca para acesso ao crédito ou para realização de poupanças e também nos usos quotidianos que fazem da moeda eletrónica ̶  utilização do banco online e usos do cartão de débito e de crédito  ̶ , seja para consulta da conta bancária, seja para realização de pagamentos (cf. figura 2).

Como também assinalo adiante, não obstante viverem com algum desafogo económico e, em geral, terem condições de reação para despesas inesperadas, a esmagadora maioria está obrigada ao pagamento de prestações mensais por empréstimo(s) contraídos na banca – mais de 3/4; dos quais cerca de 1/3 acumula mais do que um empréstimo. Além disso, a acentuar o peso dos que se perspetivam em dificuldades crescentes (47% manifesta que no último ano teve dificuldade em pagar despesas correntes pelo menos uma vez), uma proporção expressiva considera que em caso de necessidade “seria difícil” (19%) ou mesmo nada provável (12%) pedir um “pequeno empréstimo” a familiares, amigos ou outros. Isto embora cerca de 1/5 tenha assumido essa ação em favor de terceiros (21% declaram ter apoiado um familiar/amigo com 1000 euros ou mais no último ano).

Nas suas respostas revelam níveis de literacia financeira tendencialmente melhorados. E isto, embora alguns dos seus comportamentos e preferências não deixem de manifestar também contradições. Uma proporção significativa tem poupanças (71%) e recorreria a esse meio para fazer face a despesas inesperadas (60%). A esmagadora maioria declara que “sabe (seguramente) quanto dinheiro tem disponível, aproximadamente, na conta à ordem” (81%), ou “tem pelo menos uma ideia aproximada” (18%). Neste conjunto, são residuais os que “normalmente” não controlam o saldo da conta bancária (2%) ou apenas o fazem “raramente” (2%). A maioria (perto de 2/3) fá-lo “pelo menos uma vez por semana”. Os meios que utilizam para o fazer são preferencialmente o “banco online” (66%) e o multibanco (53%).

Figura 1  ̶  Escalões de rendimentos (%)

Fonte: CIES-IUL (2012), IRCIF – Inquérito aos Rendimentos e Consumos de Indivíduos e Famílias.

Sendo este o retrato global, numa abordagem que toma como elemento de segmentação interna do todo em análise os cinco escalões de rendimentos que a partir de 2013 diferenciam o esforço individual e familiar das contribuições de impostos (escalões de IRS 2013), procura-se agora perceber diferenciações de comportamentos e orientações financeiras. Concretamente, questiona-se quais os segmentos de rendimentos que estão mais permeáveis ao sobre-endividamento? Quais os que manifestam níveis de literacia financeira menos ajustados a um contexto económico e social que, de forma crescente, transfere responsabilidades públicas de proteção nas situações de atomização ligadas a contradições das biografias – por exemplo, resultantes de desemprego ou doença – para o domínio privado e da “responsabilidade” individual? São os mesmos?

Esta análise é desenvolvida na referência aos dados apresentados na figura 2.

Figura 2 Escalões de rendimentos e gestão de recursos financeiros (%)

Fonte: CIES-IUL (2012), IRCIF – Inquérito aos Rendimentos e Consumos de Indivíduos e Famílias.

Nota: “Tipo de empréstimo” e “Meios de pagamento” resposta múltipla: percentagens indicam proporção de individuos e famílias que utilizam tal instrumento.

Os comportamentos e orientações dos vários segmentos quanto à forma como se relacionam com a banca e gerem os recursos financeiros são muito diferenciados, variando significativamente e de forma linear em função da disponibilidade financeira: quanto mais dinheiro auferem maior a propensão para acesso ao crédito, maior a capacidade e concretização de poupanças, mais intensos e diversificados os usos do dinheiro eletrónico. A mesma tendência é ainda observada na disponibilidade de apoios informais: os que mais contam com esses apoios são também os que dispõem de mais recursos e alternativas.

De forma transversal, nos vários indicadores aqui em destaque, os dois agrupamentos com rendimentos mais baixos são claramente os mais retraídos: seja no acesso ao crédito (no escalão até 10.000 euros só 45% contraiu algum tipo de empréstimo; no seguinte estão na mesma situação 73% dos indivíduos e famílias); seja no uso da moeda eletrónica como meio preferencial de pagamento de bens ou serviços (nestes dois segmentos muito apoiado no cartão de débito e no pagamento em dinheiro); seja na capacidade de reação a despesas imprevistas (mais de metade destes indivíduos e famílias declaram que seria difícil ou mesmo nada provável conseguir 1500 euros para despesas imprevistas) e se enfrentassem tal situação a mesma proporção iria recorrer a familiares e amigos. É igualmente nestes dois agrupamentos de rendimentos que as dificuldades para fazer face a despesas correntes se têm feito sentir com mais frequência no último ano (cerca de 2/3 declara ter experimentado essa situação mais do que em uma ocasião). Compreende-se assim que seja também no seu seio que com maior frequência a disponibilidade de fazer poupanças mais regrediu ou mesmo nunca chegou a concretizar-se, alegadamente, sobretudo “porque o dinheiro disponível não permite”.

Nestes segmentos de rendimentos mais baixos, a maior debilidade das redes sociais, sugere que aquelas, provavelmente, também gozam de menos folga para reação a um contexto económico adverso e instável. Apesar de o seu recurso ao crédito ser menos alargado, entre os que utilizam tais instrumentos evidencia-se um uso mais frequente dos diferentes tipos de crédito pessoal e alguma incidência de indivíduos e famílias com vários empréstimos. Estes comportamentos acentuam-se, porém, no segmento de rendimentos intermédios, entre 19.000 euros e 40.000 euros: nestes, 37% dos que contrataram pelo menos um empréstimo acumulam dois e sobretudo três ou mais empréstimos onde se podem associar o crédito para compra de casa própria (contraído por 92%), créditos pessoais (21%) e automóvel (24%).

Notas:

[1] No quadro do Projeto “Pensar o futuro e encontrar novas perspetivas para a promoção sustentada do bem-estar e qualidade de vida”. Dados recolhidos, portanto, num período marcado pela contestação e mobilização cívica contra a implementação de medidas de aprofundamento da austeridade, de aumento galopante do desemprego e perda expressiva de direitos sociais que se davam como garantidos. Cf. Mauritti, Rosário (2012),“Processos de reconfiguração de estilos de vida: a classe média em perspetiva”, Plataforma Barómetro Social, 5ª Série, 5/12/2012, In: http://barometro.com.pt/archives/791.

[2] Mauritti, Rosário e Susana da Cruz Martins (2012), “Classe média, bem-estar e valores culturais: Mudança e continuidade”, in: Manuel Carlos Silva e João Valente Aguiar (orgs.), Classes e culturas de classe, Vila Nova de Famalicão: Húmus.

 

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