Dimensão analítica: Desporto
Título do artigo: Doping no desporto – a potenciação espúria da performance humana
Autor: José Augusto Rodrigues dos Santos
Filiação institucional: Faculdade de Desporto, Universidade do Porto
E-mail: jaugusto@fade.up.pt
Palavras-chave: Desporto, Doping.
Antes da queda do muro de Berlim, alguma intelligentzia portuguesa relacionada com as coisas do desporto lançava ao vento os mais rasgados ditirambos em honra dos heróis desportivos da antiga RDA (República Democrática Alemã) sem cuidar de saber a forma como a excelência competitiva era conseguida. A denúncia generalizada e a assunção particular de muitos atletas da Alemanha de Leste que vingaram através do doping deitaram por terra os panegíricos de alguns “senadores” iluminados que viam na URSS e nas suas vergônteas ideológicas o sol da terra.
Hoje, a mesma intelligentzia, marca com o ferrete da ignomínia as fraudes desportivas de Lance Armstrong, Marion Jones i tutti quanti que se alcandoram ao Olimpo através da batota química e de lá caíram aos trambolhões.
A ligeireza e facilidade na denúncia do doping ocidental contrastam com o esquecimento forçado pela ideologia do doping generalizado dos países que viviam pacificados pelo guarda-chuva do Pacto de Varsóvia, e que no caso da RDA era assunto de estado.
O doping é um flagelo social que atravessa transversalmente todas as sociedades humanas e que desembocou “naturalmente” no desporto. O desporto, como campo fértil de excessos, abre facilmente as portas ao uso excessivo e ilegal de substâncias com potencial ergogénico. A potenciação corporal acompanha o homem desde os seus primórdios.
O desporto veicula uma dada forma de uso social do corpo que está condicionada pelo tempo histórico em que se manifesta. Passou da dimensão cultural e religiosa primordial – os primeiros Jogos Olímpicos da Antiguidade e assumiu as vertentes utilitárias (preparação para a guerra) ou de lazer que lhe acrescentou significações plurais. A corrida de estádio primordial está, em termos de significação axiológica, nos antípodas das provas dos gladiadores que estimulavam o entusiasmo delirante das multidões sedentárias promovido pelo império romano.
Quando o desporto na Grécia Antiga se impôs como fonte incontornável de prestígio inter-polis viu a introdução de drogas potenciadoras da performance física como forma de expandir os limites da fisicidade humana. Os antigos gregos usavam ervas e fungos, alguns alucinogénios, para melhorar a sua performance, chegando mesmo a comer testículos de animais crus no sentido de ter acesso às propriedades androgénicas dos animais em causa.
A génese da dopagem no desporto entronca na história da humanidade e, na atualidade, pode ter um campo fértil de irradiação no seio da própria família. V. Semenov, membro da comissão médica do Comité Olímpico Internacional e diretor do laboratório nacional anti-doping da antiga União Soviética esclareceu que muitos pais iam ter com ele para se informarem da melhor forma de utilizarem os anabolizantes. Não questionavam a sua utilização mas somente a forma de obter o máximo rendimento com a administração das drogas. Caído há muito o muro de Berlim não penso que a situação se tenha alterado significativamente.
Muitos pais, frustrados por carreiras desportivas pobres ou inexistentes tentam, através dos filhos, obter o êxito que nunca tiveram. Sem o travejamento ético que deve suportar todas as opções humanas projetam nos filhos as realizações que lhes amacie a autoestima, sem cuidar de saber da justeza e legalidade dos meios para tal atingir.
Após a morte do ciclista dinamarquês Knud Jensen nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, supostamente devido ao uso de anfetaminas, o Comité Olímpico Internacional legislou no sentido de erradicar o doping do desporto, elaborando um índex constituído por centenas de substâncias proibidas. As modernas técnicas de testagem – cromatografia líquida e espectrometria de massas, apuram o crivo para evitar a batota química mas não eliminaram a trapaça. Lance Armstrong, durante a sua carreira, foi testado centenas de vezes e, tirando uma única vez que acusou e foi encoberto pela própria comissão médica do organismo que superintende o ciclismo internacional, sempre se mostrou imaculado de todo o pecado de doping. As denúncias dos colegas, mais que qualquer outro meio de deteção, permitiram descobrir que afinal o “rei ia nu”.
O desporto está intimamente tocado pela lógica da superação que o eleva como fator de transcendência. Para que esta transcendência se exalte em humanismo deve evitar todos os atropelos éticos que fazem da prática desportiva uma afronta à saúde e uma batota à regra.
O desporto limpo pode ser uma Utopia reconhecemos mas, como afirma Oscar Wilde, num planisfério onde não figure um país denominado Utopia corresponde a um mundo que não merece a pena ser vivido.