Breve Retrato Sociográfico dos Núcleos Reconstituídos em Portugal

Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida

Título do artigo: Breve Retrato Sociográfico dos Núcleos Reconstituídos em Portugal

Autora: Cristina Cunha

Filiação institucional: Socióloga e investigadora (Instituto de Sociologia: Faculdade de Letras da Universidade do Porto)

E-mail: cristinacunha.m@gmail.com.

Palavras-chave: Núcleos Reconstituídos, Portugal.

A família já não é o que era. A família portuguesa, apesar de manter traços tradicionais, tem mudado ao nível da sua estrutura e da forma como se estabelecem as relações, assumindo-se atualmente como uma família diferente. As suas transformações, ao longo das últimas décadas, são manifestas e devem-se fundamentalmente a alterações das conjunturas económicas que levam, por sua vez, a modificações da intensidade e do reportório de fenómenos sociais [1].

Neste contexto de mudança na sociedade portuguesa, a abordagem quer estatística, quer demográfica mostra que as famílias tradicionais tendem a conviver cada vez mais com outras formas de família, como é o caso das famílias monoparentais, das famílias recompostas ou também conhecidas por “núcleos familiares reconstituídos”. Assim, um outro testemunho da mudança radica na visibilidade destas últimas que conheceu o seu primeiro registo estatístico no Recenseamento Geral da População de 2001. O reconhecimento da condição do modelo da família recomposta ou núcleo familiar reconstituído obedece a critérios relacionados com a junção pela via do casamento ou da coabitação não formalizada de dois adultos tendo, pelo menos, um filho de um dos cônjuges [2].

Portugal, à semelhança dos seus congéneres europeus, apresenta um crescente aumento de casos de núcleos familiares reconstituídos (ou famílias recompostas) embora, em termos numéricos, seja comparativamente mais discreto e na grande maioria das vezes, famílias de padrastos [3]. A análise da informação censitária de 2001 e 2011 assim como de diversas publicações do Instituto Nacional de Estatística sobre os núcleos familiares reconstituídos, permite traçar algumas importantes linhas de caracterização.

O retrato acerca da evolução dos núcleos familiares reconstituídos em Portugal entre 2001 e 2011 é de facto notável. Nestes últimos 10 anos, verificou-se um considerável aumento de núcleos familiares reconstituídos ou recompostos. Em 2011, esta configuração familiar representa em Portugal 6,55% do total de núcleos conjugais com filhos (o equivalente a 105 763 núcleos familiares reconstituídos) sendo notório uma diferença na distribuição quanto ao tipo de relação/núcleo conjugal. Nesta medida, verificamos uma maior incidência destes núcleos nos casais “de facto” correspondendo a 59,18% (o equivalente a 62 601) do que nos “de direito” com 40,81% (correspondendo a 43 162). Por conseguinte, a situação “de facto” assume um significado diferente da do passado resultante “de uma visão mais modernizante e desinstitucionalizada do casamento, associada a uma matriz relacional e afectiva da conjugalidade” [4]. De ressaltar que, em 2001, esses núcleos representavam, por sua vez, 2,7% do total dos núcleos conjugais com filhos (correspondendo a 46 786 núcleos familiares recompostos).

Observando a distribuição percentual dos núcleos reconstituídos segundo o tipo de relação conjugal em 2001 e 2011, podemos constatar que, no Continente em 2001, a proporção destes núcleos é de 56,36% na relação conjugal “de facto” enquanto na “de direito” é menor (43,64%). Em 2011, os casos de relação “de facto” é de 59,31% e “de direito” de 40,69%. Quanto aos casos de núcleos reconstituídos da Região Autónoma dos Açores em 2001, verifica-se a existência de mais casos de relação “de direito” com 55,73% enquanto os casos “de facto” são de 44,27%. Em 2011, há uma inversão das posições no sentido em que os casos de núcleos reconstituídos “de facto” representam 56,09% e os “de direito” são 43,91%. O mesmo se verifica na Região Autónoma da Madeira visto que, em 2001, registavam-se 53,08% de casos de relação conjugal “de direito” e 46,92% “de facto”. Com os Censos de 2011, observa-se uma redistribuição dos casos de relação conjugal, verificando-se uma maior tendência de núcleos reconstituídos “de facto” com 58,18% e em menor número, os “de direito” (41,82%). Por conseguinte, após o divórcio ou a separação, homens e mulheres optam por viver em conjugalidade sem o formalizar por direito.

O aumento deste tipo de núcleo familiar na sociedade portuguesa entre 2001 até 2011 é visivelmente revelador de mudanças de comportamentos. Sobre a distribuição geográfica desta configuração familiar recomposta (ou núcleos reconstituídos) no Continente, vale a pena analisar as diversidades que marcam as diferentes regiões entre esse período. Por um lado, é visível a existência de proporções mais altas de núcleos familiares reconstituídos na zona Sul (incluindo Lisboa, Alentejo e Algarve). São nomeadamente os casais “de facto” que mais se destacam. Comparativamente aos dados de 2001 na zona Sul, a proporção de casos segundo a relação conjugal de “facto” aumenta em 2011 na zona do Alentejo, verificando-se uma ligeira diminuição em Lisboa e Algarve. Por outro, no Norte confirma-se que há em 2011, apesar da diferença entre os dois tipos de conjugalidade, “de direito” e “de facto”, não ser muito distante, uma maior incidência de casais reconstituídos de “facto”. Esta situação é diferente se nos reportamos aos dados de 2001. Por conseguinte, a relação conjugal de “direito” tem vindo a ser cada vez menos expressiva na sociedade portuguesa.

Em Portugal, a partir dos anos 1970/1980, a descida do número médio de filhos por mulher provocou o estreitamento da base da pirâmide etária portuguesa. Tendo ainda por base os resultados censitários (2011), importa caracterizar tais núcleos em função do número de filhos (comuns e não comuns) do casal recomposto e o tipo de relação conjugal.

Há uma tendência para os casais com um filho não comum assumir uma relação conjugal de “direito”. A existência de mais do que um filho não comum verifica-se em maior percentagem nos casais de “facto”. Esta tendência é mais notória quando existem filhos em comum. “Tal deve-se, no essencial, ao facto de a maioria destas crianças precederem a atual relação ou casamento, e outras serem comuns ao casal recomposto” [5] legitimando estes últimos a relação conjugal e parental. Ressalta ainda que a proporção de casais de “direito” aumenta com o crescimento do número de filhos em comum. 64,5% dos casais sem filhos em comum são casais de “facto”. Este número diminui (53,0%) quando existe um filho em comum e volta a decrescer para 45,7% quando existem dois ou mais filhos em comum.

Em resumo, a curiosidade pelas famílias recompostas classificado como um grupo doméstico diferente não é um fenómeno novo como refere a literatura mas o seu crescimento quantitativo e o seu significado cultural fazem com que não possa ser essa uma questão negligenciada pela comunidade científica, em particular, pela sociologia. Conclui-se que, das fontes estatísticas utilizadas (Censos de 2001 e 2011), esta breve caracterização do perfil dos núcleos familiares reconstituídos contribui para um melhor conhecimento desta realidade familiar que sofreu um considerável crescimento em Portugal.

Notas:

[1] Torres, A. (2001). Sociologia do Casamento: A família e a Questão Feminina. Oeiras: Celta Editora.

[2] Termo referenciado nos Censos (2011: 552) “o núcleo familiar que consiste num casal “de direito” ou “de facto” com um ou mais filhos naturais ou adotados, sendo, pelo menos, um deles filho, apenas, de um dos membros do casal”.

[3] Lobo, C. (2006: 117). Recomposições Familiares: Dinâmicas de um processo de transição. Lisboa: Tese de Doutoramento em Sociologia. ISCTE.

[4] Acresce a essa mudança de significado, a utilização de inúmeras expressões por diversos autores para qualificar a união de facto como, por exemplo, “concubinato, coabitação, união livre, casamento experimental, casamento sem papéis, casamento informal, casamento extra-conjugal, convivências não matrimoniais”, entre outras. INE (2008: 100). Revista de Estudos Demográficos. Lisboa: INE.

[5] Lobo, C. (2006: 124). Recomposições Familiares: Dinâmicas de um processo de transição. Lisboa: Tese de Doutoramento em Sociologia. ISCTE.

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