Dimensão analítica: Desporto
Título do artigo: Mulher no Desporto. O Erro de Coubertin (2)
Autor: José Augusto Rodrigues dos Santos
Filiação institucional: Faculdade de Desporto, Universidade do Porto
E-mail: jaugusto@fade.up.pt
Palavras-chave: Mulher, Desporto, Emancipação.
(continuação do número anterior)
Os séculos XIX e XX, a par dum surto civilizacional ímpar fruto dos avanços técnico-científicos emergentes, viram a mulher ganhar, com muita luta e atitudes refractárias, os seus direitos de cidadania. Esse movimento de emancipação que deve ter como referência, não colocar a mulher num plano superior ao homem, o que representaria a continuação da lógica de subordinação agora de sinal contrário que rejeitamos, mas sim colocá-la ao lado do homem, como companheira de vida e desígnio, na assunção duma cidadania plena e partilhada que cumpra os ditames da génese mitológica que nos enforma. Úrano e Geia, harmonizados pela força cósmica de Eros.
No nosso universo conceptual e cultural emergem com força as contradições entre a afirmação da mulher na sociedade e a praxis específica de alguns países. Subsistem focos de desagregação que escravizam as mulheres a práticas infandas.
No Quénia as mulheres ainda são obrigadas à excisão do clítoris para não terem a possibilidade de gozar e ter prazer no acto sexual. No Afeganistão, mesmo após a acção militar dos Estados Unidos e seus companheiros de punição que pretensamente libertaram o país dos algozes talibans, muitas mulheres não conseguem assumir a sua face perante a sociedade e continuam a esconder-se por detrás das burkas.
Há uns anos atrás, um filme italiano neo-realista evidenciava, com clareza, a lógica separatista e segregacionista entre homens e mulheres, em sociedades marcadamente patriarcais. Numa aldeia da Sicília, na noite de núpcias de um casal apaixonado, o homem e mulher vestidos consumaram o acto sexual, sem que antes o homem tivesse tapado a cara da companheira com um pano para ela não ver os esgares de prazer do seu cônjuge.
Em Portugal, apesar da esperança que os alvores da República trouxe para a afirmação social da mulher e que foi reforçada pelos ares libertadores do 25 de Abril, esta continuou e em algumas situações continua a ser mão de obra escrava, pior remunerada que o homem e sistematicamente prejudicada pela sua função maternal.
O caminho a percorrer para dar à mulher o lugar dela na sociedade ainda está repleto de escolhos. O caminho não está feito; temos de construí-lo dia a dia com as forças das nossas mais profundas convicções.
Exige-se uma revolução cultural, esta isenta de “livrinhos vermelhos”, mas plena de sentido de liberdade.
A luta das mulheres, hoje em dia, é uma luta plural, penetrada por outras que visam quebrar as grilhetas de qualquer tipo de sujeição. “Yes, They Can”. Sim, as mulheres podem tanto como os homens, como se comprova em todos os campos de manifestação humana. Nunca o crucial papel biológico que lhe corresponde pode tolher a mulher da procura da sua realização académica e profissional. E desportiva, também.
O desporto, até ao século XX, foi também um campo de segregação do género feminino. Para o barão Pierre de Coubertin “Uma Olimpíada com mulheres seria impraticável, desinteressante, inestética e imprópria”. Continuou a porfiar na sua intransigência em 1934 quando, na comemoração do 40º aniversário do restabelecimento dos Jogos Olímpicos afirmou: “Continuo a pensar que o contacto com as práticas atléticas femininas é mau para os atletas masculinos, e que estas actividades deviam ser excluídas do programa olímpico”. Em 27 de Agosto de 1936, quase um ano antes da sua morte, coloca a ênfase no seu arreigado e exclusivista modelo conceptual: “O único herói Olímpico real é o homem adulto individual. Por isso, nada de mulheres ou desportos de equipa”.
Portugal, também teve os seus “controleiros do bem-estar feminino”, como o insuspeito Moniz Pereira que afirmou que a mulher não estava capacitada para realizar a maratona, tarefa desportiva que excedia as suas capacidades físicas. Quando Rosa Mota e Manuela Machado se alcandoram, na corrida de maratona, a campeã olímpica e campeã do mundo, respetivamente, provaram ao Professor Moniz Pereira que a sua costela de gentil-homem, preocupado com a fragilidade feminina, não tinha razão de ser.
O exclusivismo machista perfilhado por Coubertin entronca no lastro cultural judaico-cristão que relegava a mulher para o papel de servidora do homem, considerado este como o procriador da espécie e guardião e árbitro da moral. Depois, uma cultura centrada no homem, criou derivas científicas nefandas que marcou a mulher com o estigma da incapacidade intelectual. Brocca (1824-1880), fundador da Sociedade Antropológica Parisiense, escreveu do alto da sua omnisciência científica: “Não devemos perder de vista o facto de que a mulher média é normalmente menos inteligente que o homem”. A cereja no bolo da iniquidade é dada por Gustave Le Bom que afirmava sem rebuço que “Entre as mulheres, a inteligência inferior é tão óbvia para ser questionado… em termos de volume, o cérebro da mulher está perto do dos gorilas do que do mais desenvolvido cérebro dos homens”.
Com este ambiente cultural e científico, característico dos círculos culturais e sociais em que se movia Pierre de Coubertin, não era de estranhar que o recuperador dos Jogos Olímpicos caísse em contradições insanáveis. O barão defendia uma educação física integral para rapazes e raparigas mas excluía a competição desportiva conjunta. Tal como na Antiguidade Grega, preconizava que os jogos das mulheres se realizassem após o dos homens. No entanto, a luta da mulher contra a sua exclusão dos Jogos Olímpicos começou bem cedo, em Atenas (1896). Melpomene apresentou-se à partida para a maratona olímpica. Os juízes da corrida não lhe permitiram competir com os homens. Melpomene aqueceu fora do recinto e quando a partida foi dada ele correu no percurso pré-estabelecido. Chegou ao estádio uma hora e meia depois do vencedor – Spiridon Louis. Proibida de entrar no estádio, correu em volta do recinto, terminando em aproximadamente 4h30’. Esta mulher simples rompeu, com coragem e determinação, as grilhetas de subserviência e menoridade física e mental que Coubertin queria perpetuar.
Este exemplo de valor e pertinácia demonstra um heroísmo que Coubertin pensava que era apanágio dos homens. Pierre de Coubertion, enganou-se.
Notas
Dias dos Reis, M.F.M. (1995) Análise do Envolvimento da Mulher no Fenómeno Desportivo, Razões Genésicas Justificativas da sua Fraca Participação. Universidade do Porto, Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física.
Boulongne YP (s/d) Pierre de Coubertin and women’s sport. (www.la84foundation.org/…/OREXXVI31za.pdf).




