Mulher no Desporto. O Erro de Coubertin (1)

Dimensão analítica: Desporto

Título do artigo: Mulher no Desporto. O Erro de Coubertin (1)

Autor: José Augusto Rodrigues dos Santos

Filiação institucional: Faculdade de Desporto, Universidade do Porto

E-mail: jaugusto@fade.up.pt

Palavras-chave: Mulher, Desporto, Emancipação.

Este ano, o prémio Nobel honrou duas mulheres Liberianas e uma Iemenita que se transformaram em consciência crítica da Humanidade contra a segregação de que as mulheres são vítimas em sociedades fechadas e dogmáticas. A sua voz lúcida clamou contra os preceitos inumanos e práticas nefandas alicerçados em dogmas religiosos e leis consuetudinárias que não só diminuem a dimensão social e humana da mulher mas são um libelo contra toda a humanidade.

Quem não perceber o sentido de completude harmónica dos dois géneros humanos desiste do essencial da sua humanidade. O destino dos géneros é encontrarem-se por muitas derivas que se encontram na forma de assumir o ser na sua inalienável individualidade.

Para a Antiguidade Grega o princípio motor do Ser era o Amor, gerado em síntese de contrários. A partir do Caos genésico nasce Eros que assegura a coesão entre o Céu e a Terra (Úrano e Geia). Da união de Úrano com Geia nasce o Titã Oceano que casa com Tétis (que personifica a força feminina do Mar). Só uma potência feminina pode amadurecer e atrair o sémen do macho. Tétis zanga-se por vezes com Oceano, mas a reconciliação subsequente salva a ordem do mundo.

Na mitologia genésica da nossa cultura edifica-se o conceito de complementaridade entre géneros. Mas a pulsão masculina de dominação estava latente nos deuses. De Crono nascem os Olímpicos. Zeus, filho de Crono destrona o pai e torna-se o deus mais poderoso e majestático de todo o panteão divino Pan-helénico.

Apesar da lógica genésica de complementaridade entre masculino e feminino, os mitos crescem no lastro duma lógica social que relega as divindades femininas para uma condição de subalternidade. O papel feminino, reduz-se a apoiar, ajudar, atenuar, os excessos masculinos. Assim desde o início toda a lógica do poder está subordinada ao masculino, funcionando o feminino como suporte afectivo e funcional desse poder.

Os mitos, como construções humanas, revelam o papel subalterno da mulher na Grécia. A lógica do poder patriarcal estendia-se a outras sociedades da Antiguidade – Egipto, Hebreia, etc.

O papel social da mulher nas sociedades antigas reduzia-se, quase sempre, ao lar e família. Na Grécia a educação das raparigas visava fazer delas excelentes mães e obedientes esposas, reservando-lhes na casa, um lugar especial, o gineceu, como espaço privativo a que os homens não tinham acesso. Mesmo em Esparta, em que a educação das raparigas tinha nos exercícios físicos uma componente importante, tal facto não era no sentido de qualquer lógica igualitária mas única e simplesmente para poderem dar filhos mais fortes e saudáveis à nação. Isso era tão importante para essa cidade-estado que as crianças que nasciam com malformações eram eliminadas.

Modelo de segregação sexual, os Jogos Olímpicos da Antiguidade eram fruição exclusiva dos homens, quer como participantes quer como espectadores. A mulher tinha os seus jogos um mês após os dos homens que consistiam somente na corrida de estádio (prova de velocidade). Toda a mulher que penetrasse no recinto dos jogos, se descoberta, era condenada à morte e lançada do alto do monte Thypaon. Calipateira, ao querer assistir às provas do filho, foi descoberta quando ao saltar uma cerca a capa que a envolvia se abriu e permitiu verificar a sua condição de mulher. Escapou da morte porque era filha, mãe e irmã de vários campeões olímpicos. Os juízes, ouvindo o apelo do povo, comutaram-lhe a pena mas, a partir daquele dia, todos os que quisessem assistir aos jogos faziam-no nus.

O modelo do papel social da mulher na sociedade hebraica era dado pelo aforismo “e ficou em casa a fiar a sua lã”.

Na Idade Média, o papel da mulher continua a lógica de subalternidade em relação ao homem. A mulher era dama ou donzela, por quem se esgrimia armas em justas e torneios, por quem se cantavam cantares de amigo e de amor, cuja vida social se reduzia às práticas cortesãs, e que estavam afastadas da fruição quer dos bens da cultura quer da partilha do poder político. A mulher era também sede de pecado e tentação; os cintos de castidade, além de símbolo de humilhação eram sinal de prepotência masculina e da pouca importância social da mulher, que funcionava, unicamente, como complemento na afirmação social do homem.

Em Portugal, com o advento da República no início do século XX, assiste-se a um esforço de emancipação das mulheres Portuguesas no seio de uma sociedade em profunda transformação. Ana de Castro Osório, proclama em 1910: “Nós trabalhamos mais pela futura república lutando pelos nossos direitos, do que prestando ao homem um auxílio, que apenas se pode traduzir em palavras, que não correspondem a factos concretos… não há país que avance e progrida se a mulher for nele uma serva perante a lei, uma inferior pela falta de instrução, um valor nulo na sociedade e na família”.

A consciência aguda da necessidade de transformação das mentalidades que colocassem a mulher como companheira de desígnio existencial e não complemento assistencial da existência masculina, demorou longos anos a amadurecer e dar frutos já que a noosfera da civilização europeia estava tocada com o estigma da subalternização social da mulher.

Nietzsche nos seus ditirambos afirma que “o homem nasceu para a guerra e a mulher para repouso do guerreiro”. Este conceito machista e segregador atravessou indelével a história da humanidade e somente nas sociedades pós-industriais é que começou a ser posto em causa pelas lutas emancipalistas das mulheres que progressivamente vão ganhando o seu espaço de afirmação autónoma na sociedade.

Mesmo nas sociedades matriarcais de algumas tribos na Polinésia, em que a promiscuidade sexual reinante inviabilizava o estabelecimento do clã familiar por linhagem paterna, o papel da mulher foi sempre reduzido às tarefas da casa e educação dos filhos, cabendo ao homem as tarefas “mais nobres” da luta pela subsistência. Mesmo que as mulheres não estivessem subordinadas a um marido estavam-no à sua função social que as limitava às funções da casa e família.

(continua no próximo número)

Notas

Grimal, P. (1989) A Mitologia Grega. Colecção Saber. Publicações Europa-América, 2ª Edição

Osório, Ana de Castro (1910) A Mulher e a Criança. Revista Mensal. http://egraovascocentrep.blogspot.pt/2010/03/biografia-de-ana-de-castro-osorio.html

Pereira, M.H.R. (1990) Helade. Antologia da Cultura Grega. Instituto de Estudos Clássicos. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 5ª Edição.

Esta entrada foi publicada em Saúde e Condições e Estilos de vida com as tags , , . ligação permanente.