Escola e governo da infância: que significados para a vida das crianças

Dimensão analítica: Educação, ciência e tecnologia

Título do artigo: Escola e governo da infância: que significados para a vida das crianças

Autora: Fátima Pereira

Filiação institucional: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto

E-mail: fpereira@fpce.up.pt

Palavras-chave: educação, infância, sociedade

Em tempos do que se tem designado por «crise da Escola», e num contexto de mudanças económicas, sociais e culturais incertas, a infância continua a constituir uma entidade social na qual se depositam utopias sociais e esperanças de um mundo melhor [1].

Ao longo dos últimos dois séculos, a infância tem sido objeto de uma complexa abordagem cultural, social e científica, constituindo um conceito multidimensional que integra a convergência de utopias civilizacionais, mas também a consideração de aspetos pragmáticos, éticos e ontológicos divergentes e até contraditórios. A educação escolar moderna elegeu as crianças como «objeto» da sua intervenção e a infância como construto social a institucionalizar. Por essa razão, a problematização da infância é também a problematização da educação escolar e das profissionalidades que se têm constituído para cuidar e educar as crianças, e é ainda a problematização das realidades sociais que produzem as narrativas que a configuram.

O “declínio da instituição” escolar moderna [2], que subjaz à crise da Escola, traz consigo transformações profundas nas formas de representar e de regular a infância, alterando o seu governo e configurando a sua reinstitucionalização. O conceito de governo remete-nos para o que Foucault [3] define como governabilidade, através de sistemas de racionalidade que hierarquizam e julgam a ação dos indivíduos e por um poder que produz subjetividades, disciplinando as normas de conduta. O governo da infância na educação escolar implica-se, assim, nos discursos científicos, pedagógicos, culturais e políticos que direta ou indiretamente «fabricam» as formas de subjetivação e de construção de sociabilidades na Escola e que condicionam as práticas educativas e as relações sociais que afetam a vida das crianças, dentro e fora do contexto escolar.

Os discursos pedagógicos representam ideologias que instituem modos diversos de concetualizar a educação escolar da infância, de compreender as relações entre a sociedade e a criança e de determinar o seu lugar social. A pedagogia define quadros de significação sobre as crianças e sobre a infância que se fundamentam em conceitos particulares sobre a natureza humana, os processos naturais do seu desenvolvimento, a sociedade e as formas de socialização que se lhe adequam. Por isso, ela representa o discurso que todas as sociedades ocidentais têm sobre a educação, sobre as práticas de instrução e de formação e sobre os juízos de valor que as justificam [4]. Sendo os discursos pedagógicos fundamentais para a organização das formas de vida na escola, a sua análise não pode deixar de considerar os seus impactos no presente e no futuro das crianças.

Nas últimas décadas, assistimos a uma tendência para a hiperinstitucionalização da infância que se manifesta nos discursos públicos e nas políticas educativas que tendem a justificar e a legitimar a crescente integração das crianças em espaços e tempos regulados por normas institucionais. A Escola é sem dúvida a instituição que mais afeta a vida das crianças, alargando os seus efeitos a dimensões do quotidiano extraescolar que não deveria afetar. As lógicas e as racionalidades escolarizadoras invadem as atividades de tempos livres, a vida em família e até os momentos de lazer das crianças, colonizando o seu mundo da vida. Num estudo que realizei [5] sobre os discursos sobre a infância na formação inicial de professores do 1º CEB, desde o 25 de Abril até meados da década passada, identifiquei cinco narrativas sobre a infância: a infância como projeto social, a infância produtiva, a infância idílica, a infância com lugar próprio e a infância em risco. Cada uma destas narrativas constitui uma entidade heterotópica constituída a partir de discursos do campo da ciência, da cultura, da ideologia, da ética e da política. Estas narrativas «contam histórias» sobre quem são as crianças e sobre as suas relações com o mundo social, designadamente o mundo escolar, condicionando a interpretação que os professores realizam sobre a relação educativa e a forma como constroem as suas relações com as crianças. O estudo permitiu, ainda, compreender que existe uma complexificação dos sistemas de justificação da prática institucional na educação escolar da infância, um vazio de legitimação das formas de vida na escola e uma (im)pertinência dos saberes científicos face à educação das crianças, obrigando os professores a um esforço permanente de justificação do seu trabalho e colocando a criação de novos dispositivos cognitivos para compreender a infância e a sua educação escolar nas «mãos» dos professores e segundo uma racionalidade contingente, com todo o risco de arbitrariedade que isso comporta.

Interessa realçar que, ainda de acordo com o estudo, o lugar social da infância deixou de estar dicotomizado entre um estatuto de criança que a confina à família e um estatuto de aluno que a confina à Escola, mas é agora um meta-lugar que permite a permeabilidade entre esses dois mundos e despoja a infância da sua privacidade. Por outro lado, os significados sobre a infância evidenciam-se como uma dimensão incontornável para a configuração do trabalho dos professores, constituindo, as crianças, o principal fator de transformação da sua identidade profissional; as crianças não deixam indiferentes os professores, «seduzindo-os» e surpreendendo-os no quotidiano escolar, subvertendo muitas vezes a intencionalidade do seu governo, de racionalização da sua vida e de formação da sua identidade, que subjaz à instituição escolar. Assim, se a tendência para a hiperinstitucionalização da infância constitui um enorme «risco» para as crianças, também é verdade que elas tendem a cada vez mais utilizar os corredores de liberdade que a Escola ainda lhes proporciona; pela resistência à escolarização, pela sua afirmação como ator social de direito próprio, pelos afetos e ainda pelo que representam de simbólico em cada um de nós.

Notas

[1] Pereira, Fátima (2009), Conceptions and knowledge about childhood in initial teacher training: Changes in recent decades and their impact on teacher professionality and on schooling in childhood. Teaching and Teacher Education. Volume 25, Issue 8, November, 1009-1017.

[2] Dubet, François (2002), Le déclin de l’institution. Paris: SEUIL.

[3] Foucault, Michel (1979), Governmentality. Ideology and Consciousness 6, 5-22.

[4] Hameline, Daniel (2000), Courants et contre-courants dans la pédagogie contemporaine. Château-Gontier: Presses de l’Imprimerie de l’Indépendant.

[5] Pereira, Fátima (2010), Infância, Educação Escolar e Profissionalidade Docente. Um mapeamento social dos discursos em formação inicial de professores. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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