Dimensão analítica: Cultura e Artes
Título do artigo: Sobre a representatividade (por género) de artistas em instâncias culturais
Autor: Rui Pedro Fonseca
Filiação institucional: Facultad Bellas Artes Universidad Pais Vasco / Instituto de Sociologia Faculdade de Letras Universidade do Porto
E-mail: fonsecarppd@hotmail.com
Palavras-chave: arte, género, representatividade
A História da Arte Moderna e Contemporânea em Portugal tem evidenciado ser sobretudo uma história dos homens artistas. Assim o certifica a escassa consagração de mulheres, as poucas que conseguem ultrapassar as barreiras (invisíveis) de género, rumo ao circuito artístico. A ocupação das posições de tomada de decisão permanece altamente masculinizada, a começar pelos agentes que detêm a capacidade de injectar capital económico no mercado artístico: coleccionadores e investidores são essencialmente homens, a maior parte empresários. No que concerne às/aos agentes de mediação, promotores da produção artística (galeristas, críticos, comissários, etc.) as discrepâncias mantêm-se: veja-se o caso da presença de comissariado em Serralves, por género, em que dos/as 207 responsáveis, muitas vezes reincidentes nas suas funções, apenas 39 (19%) são mulheres [1].
Inquirir instituições culturais e averiguar a representatividade de artistas, por género, pode ser um válido indicador sobre se a igualdade de género é, ou não, uma realidade alcançada no campo artístico: a plataforma Anamnese, que assinala a crescente profissionalização de jovens artistas portugueses/as emergentes, através da sua formação artística especializada, fornece um registo de 417 artistas associados/as, dos/as quais 37% são mulheres; a Fundação de Cerveira acolhe como propósito a promoção de arte contemporânea nacional e internacional através da organização de bienais de arte, tendo premiado (de 1980 a 2008) 101 artistas, dos/as quais 31% são mulheres; em 17 galerias de arte contemporânea da cidade do Porto, estando a maior parte delas situadas na Rua Miguel Bombarda, todas representam mais homens que mulheres – em conjunto, num total de 494 artistas, apenas 17 (24%) são mulheres; o concurso BESrevelação (edições de 2005 a 2010) revela a presença de 7 (33%) mulheres, num total de 21 jovens artistas que tiveram a oportunidade de mostrar o seu trabalho. No Museu de Serralves, de 1 de Setembro de 1999 a 24 de Setembro de 2010, expuseram 296 artistas, em que 54 (18%) são mulheres.
Se se procurarem apurar critérios de selecção/consagração de obras de arte, muito dificilmente se apreenderá uma cartilha igual para dois galeristas ou comissários. Poderá, no entanto, existir um consenso nos agentes consagrantes que no circuito artístico há, devido à saturação da produção artística, uma demanda pela originalidade para as/os criadoras/es que actuam ou pretendem entrar no circuito. A originalidade, a capacidade de criar surpresa, não é uma façanha exclusiva a homens artistas. Sobrepõe-se antes a crença, ou a adesão dóxica – disposições-chave que fundamentam a valorização / especulação da obra de arte, e que têm vindo a consubstanciar ao longo da história, com o reforço da História e da crítica da Arte, o “homem-génio”.
A ausência das mulheres nas academias de belas artes, ainda no decorrer, mas sobretudo antes do século XX, pode ser explicada pela existência de sistemas societais patriarcais que sujeitavam as mulheres à esfera privada, encarregando-as com tarefas domésticas juntamente com as da procriação, negando-lhes possibilidades de aceder à esfera política e à educação – o que limitara de forma determinante a possibilidade destas promoverem os seus próprios interesses – poderá ser parte da explicação da presença muito ténue de mulheres “génias” no campo artístico ao longo da história da arte. As lutas das feministas portuguesas pelos direitos reprodutivos, sexuais e laborais ao longo do século XX e no inicio do século XXI originaram conquistas e mudanças consequentes onde se pode afirmar a existência de mais igualdade de direitos, mesmo no campo artístico. Contudo, no que respeita à formação artística, constata-se que esta não é um critério de consagração no campo da arte. Observando os indicadores do INE em relação à presença e aquisição de diplomas no ensino superior artístico (de 1997 a 2008) verifica-se um rompimento com o passado, em que as mulheres apresentam mais índices educativos (são as mais diplomadas e as que apresentam maior frequência universitária) (ver tabela 1). São dados que revelam uma mesma contradição, também apanágio em outras áreas de trabalho: as mulheres artistas portuguesas apresentam índices mais elevados de qualificações, mas uma muito baixa presença nos espaços artísticos consagrantes.
Anos Lectivos | 1997/1998 | 2004/2005 | 2007/2008 |
Homens | 1.711 (42%) | 6.525 (43%) | 7.916 (44%) |
Mulheres | 2.384 (58%) | 8.465 (57%) | 9.934 (56%) |
Total | 4.095 | 14.990 | 17.850 |
Tabela 1 N.º Alunas/os matriculados no ensino superior artístico (Licenciatura) nos anos de 1997/1998, 2004/2005 e 2007/2008 em Portugal (Fonte: INE)[2]
A marginalização das mulheres em instâncias artísticas assegura a continuidade da primazia de homens nas posições de poder, assim como se continuam a manter afastados eventuais discursos de género contra-hegemónicos. O campo artístico em Portugal confirma não ser um mundo à parte e assume-se como mais uma arena profissional que premeia mais os homens e assegura a desigualdade de oportunidades. Ao estarem demasiadamente imersas nas dificuldades em serem mulheres artistas num sistema artístico dominado pelos homens, a sua luta passará pela necessidade, intrínseca ao campo, em produzir arte que se referencie nas obras-mestras dos homens artistas, sem deixarem de ombrear com homens num sistema de regras de valorização artística determinadas pelos próprios.
A presente escassez de estudos (catálogos, monografias, etc.), que aglomerem o trabalho de mulheres artistas em Portugal é um outro indicador da falta de interesse por parte de galeristas, coleccionadores/as, críticos/as, historiadores/as e editores/as – mais um sinal da perpetuação de práticas discriminatórias na consagração de mulheres artistas. Tal como sucedeu no passado, o sistema de consagração de artistas no presente transformar-se-á na História da Arte do futuro: as referências artísticas e as/os “artistas geniais” continuarão ainda a surgir, para as gerações vindouras, essencialmente no masculino.
Notas
[1] Dados levantados em Abril de 2010 http://www.bes.pt/sitebes/cms.aspx?plg=63b23525-20b2-406c-b31d-1dad49c06307
[2] Dados retirados do INE http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_indicadores&indOcorrCod=0001450&contexto=pgi&selTab=tab10