Dimensão analítica: Desporto
Título do artigo: Género e desporto
Autora: Paula Silva
Filiação institucional: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
E-mail: psilva@fade.up.pt
Palavras-chave: Género, desporto
O género está sempre presente nas nossas vidas. Codifica-nos à nascença com base na nossa aparência, interpela-nos constantemente em atitudes que tomamos e subtilmente, ou não, molda a nossa forma de pensar, de ser, de relacionar. Está presente mesmo quando fazemos questão que não esteja. A tentativa de o tornar ausente não é mais que o simples reconhecimento da sua inevitável e incontornável presença. Então, o género é algo que somos? Ou é antes algo que adquirimos? Que construímos? Que desempenhamos? Que fazemos? Expressamo-nos pelo género que somos, ou somos o género decorrente das nossas expressões?
O género é um produto do ser humano, tal como a linguagem, o parentesco, a religião e a tecnologia, organizando a vida humana em sociedade segundo padrões culturais. O género parece organizar as relações sociais em quase todos os aspectos da vida do dia-a-dia, bem como nas macroestruturas sociais como, por exemplo, as classes sociais. Estas estruturas genderizadas reforçam-se e reproduzem-se. Como Judith Lorber [2] refere, “The social reproduction of gender in individuals reproduces the gendered societal structures; as individuals act out gender norms and expectations in face-to-face-interaction, they are constructing gendered systems of dominance and power”. As acções individuais e as instituições sociais influenciam-se reciprocamente, embora as instituições sejam anteriores a um indivíduo, à sua educação ou ao seu padrão social.
Poderemos perspectivar o género como um constructo multidimensional, e deve ser interpretado como um processo que se vai desenvolvendo ao longo da vida, com ambivalências e contradições. Apresenta uma perspectiva institucional, uma individual e uma relacional, o que parece significar que a ordem de género numa sociedade é apropriada pelos indivíduos, os quais, por sua vez, desenvolvem identidades de género e apresentam imagens genderizadas [3]. Mas se reconhecer a ordem de género é fácil, compreendê-la não o é. Não devemos pensar que a formação da feminilidade e da masculinidade são determinadas pela natureza, mas também não as devemos ver como derivadas unicamente de normas sociais, orientações culturais ou determinações legais. As pessoas constroem-se como masculinas ou femininas ao reivindicarem um lugar na ordem de género, ao responderem apropriadamente ao lugar que lhe foi determinado, ou ainda pelo modo como conduzem a vida no seu dia-a-dia [4].
Os sinais e os símbolos de género estão em todo lado e, como formas padronizadas de ser e de estar adequadas, não são percebidos como tal. Logo, o género é quase sempre produzido de forma não intencional – não é algo que fomos ou somos mas que produzimos ou fazemos [3].
O desporto, considerado como um território de prevalência masculina desde as suas origens, tem sido palco privilegiado na construção de determinadas representações de masculinidade e de feminilidade. Ainda que estas representações não sejam fixas, elas marcam os corpos; não porque eles assim o sejam na sua essência, mas são assim construídos no interior de discursos, saberes e práticas sociais. Estas marcas estão também presentes no quotidiano dos indivíduos – a musculatura dos corpos, as gestualidades, os equipamentos desportivos, carregam consigo significados que, na nossa sociedade e no nosso tempo estão, também, associados ao feminino e ao masculino.
Nos diversos cenários do desporto actuam com primado uma feminização acentuada e uma masculinização hegemónica, ratificando o desporto como uma instituição de controlo social. Impera ainda a ideia da fragilidade do corpo das mulheres, incapaz de desempenhos vigorosos, de jogar agressivamente ou de resistir a provas ou competições rigorosas, de mostrar ou exercer força, de dar ou levar golpes e assumir riscos corporais – são atributos que as mulheres não devem fazer seus, por serem pertences da masculinidade. Os rapazes, por sua vez, aprendem que a suavidade, a vulnerabilidade, a fragilidade e a incompetência motora e desportiva são atributos femininos e que devem ser evitados a todo o custo. É que na arena das práticas desportivas um rapaz ser comparado ou perder para uma rapariga parece constituir um insulto ao seu orgulho masculino.
O corpo no desporto é actuante mas também admirado, pois as práticas desportivas sujeitam-se a um olhar, profano ou competente, do público no espectáculo e mediatização; e aqui parece ser a imagem que mostra de si mesma que faz a desportista, tal como é a acção que faz o desportista – a feminilidade joga-se no parecer enquanto a masculinidade no fazer.
Das raparigas espera-se a escolha de desportos mais estéticos e menos viris e esta tendência não é mais que uma construção social, que regulamenta as representações e as práticas aceitáveis do corpo, e que perpetua a ideia de ser próprio dos homens o ‘fazer’ e das mulheres o ‘comprazer’. Este constructo social provoca um sentimento de incómodo e desfiliação nas raparigas que optam por praticar desportos que não se enquadram nas representações do corpo feminino.
A genderização das actividades físicas e desportivas rege-se por aquilo que o corpo deve parecer, as suas formas e seus movimentos, e dita normas comportamentais que redundam em formas opressivas que operam sobre o corpo, resultando em corpos extremamente censurados nas suas expressões, cerceados nas sua vivências, empobrecidos.
Mas as actuações dos corpos transgridem, não raras vezes, estas tácitas configurações de controlo e as práticas desportivas podem constituir uma forma de empoderamento social por serem espaços onde se desafiam estereótipos de feminilidade e de masculinidade. Mulheres que praticam desportos associados ao masculino, com corpos fortes e musculosos que mostram com orgulho, que lutam e resistem à ideia de uma essência feminina frágil, que são notícia pelo que fazem e alcançam, obrigam-nos a repensar o modo como olhamos os corpos e os julgamentos que a partir daí compomos. Homens capazes de promover movimentos corporais graciosos e suaves abalam crenças acerca do que sancionamos ao masculino. Novas formas de olhar os corpos e suas produções promoverão possibilidades de novas corporeidades no sentido de valorização da educação e formação de crianças e jovens. E este empoderamento do corpo promoverá impactes significativos nos papéis e nas relações sociais de mulheres e homens e na ordem de género.
Notas
[1] Artigo de opinião baseado em duas publicações da autora.
[2] Lorber, Judith (1994), Paradoxes of Gender, New Haven and London: Yale University Press.
[3] Pfister, Gertrud (2002), Sport and socialisation – a gender perspective, Presentation on the Seminar “idrett mellom moral, politikk of profit” Lysebu, 22-24 November 2002.
[4] Connel, Robert (2002), Gender, Cambridge: Polity Press.