O princípio do fim da era pós-industrial (I)

Dimensão analítica: Condições e Estilos de Vida

Título do artigo: O princípio do fim da era pós-industrial (I)

Autor: Pedro Jorge Pereira

Filiação institucional: Projecto EDUCACES / Independente

E-mail: ecotopia2012@gmail.com

Palavras-chave: Ecologia, Qualidade de Vida e Industrialização

“Quem tem poucas coisas considera-se pobre e isso fá-lo sentir-se triste. Não há Papalagui algum que seja capaz de cantar e mostrar um olhar feliz se apenas possuir, como nós, uma esteira ” [1]

Prados verdejantes preenchendo o espaço até onde a vista alcança. Lavadeiras esfregando e curando as roupas nas margens do rio sereno. Crianças brincando em plena Natureza sem qualquer preocupação com o humor mutável do tempo. Lavradores transportando, em carroças puxadas por pujantes bois, as colheitas da estação. Barcos de pescadores remando no rio em busca do peixe que abunda e nada ao sabor das correntes.

Em todo este cenário o Rio Leça desempenha o papel principal. É em torno dele que se organiza, faz e sonha a vida. É a sua cadência e ritmos, marés e correntes, a lei mais suprema de toda a população ribeirinha. É o seu leito como o sangue que no corpo irriga a vida.

Mas este é o cenário de há cerca de 50 anos atrás. Sim, há cerca de 50 anos era assim a vida das populações de Matosinhos e Leça.

Cinquenta anos em que uma revolução silenciosa mas acutilante, subtil mas abrupta, chegou às águas do Rio Leça. Essa revolução foi chamada de diferentes formas.

Por conveniência chamaram-lhe “progresso”. Outros com um pouco mais de precisão histórica chamaram-lhe “industrialização”. Outros não lhe chamaram nada … foi simplesmente o que “naturalmente” aconteceu em quase todo o lado no nosso país e mesmo, ainda que em tempos diferentes, a uma escala praticamente global.

Num fenómeno de contornos amplos e complexos, de infindáveis possibilidades de estudo e reflexão, o que basicamente se pode dizer em relação ao Rio Leça (caso de estudo nesta reflexão), assim como a todo o cenário e habitat envolvente, é que … praticamente morreu. Foi o preço (ou uma parte dessa quantia incomensurável) a pagar para nos podermos ter tornado no que somos hoje em dia: Uma sociedade industrializada e capitalista global.

Dizem-nos que a vida era pobre, que a vida era dura, que a pobreza proliferava. E tudo isso é em grande medida verdade.

Dizem-nos que somos mais felizes, que a vida é mais fácil, que a riqueza se multiplicou. E tudo isso, em muitos aspectos, é em grande medida mentira.

Dizem-nos que temos hoje em dia maior qualidade de vida, mas afinal como é que se pode definir o que a qualidade de vida é realmente?

Será que todas as vicissitudes que a “vida moderna” nos trouxe estão inevitavelmente ligadas? É difícil conseguirmos ver, de uma forma muito objectiva, em que medida todas estas transformações contribuíram para que possamos viver hoje (os que ainda vivemos) melhor do que há 50 anos atrás.

Eu tive os confortos da vida moderna que os meus Pais não tiveram. Pude com relativa facilidade (naquilo que é uma facilidade, para cada vez mais famílias, mais difícil) ter acesso a educação superior. Não tenho que trabalhar de sol a sol para poder ter o suficiente para me alimentar.

Por outro lado foi já morto e sem vida que sempre conheci o Leça. Cresci sem correr pelos prados onde o meu Pai correu. Nunca pude sentir o cheiro vivo da terra e dos elementos (agora sufocados pelo cimento e betão da cidade que explodiu em direcção ao céu e ao horizonte). Muito menos pude alguma vez mergulhar ou sequer molhar os pés no Rio Leça (a não ser bem perto da nascente ainda impoluta) sem estar perto de cometer um acto semi-suicida ou de atentado à minha própria saúde.

O indivíduo moderno possui hoje (aquele que faz parte dessa elite planetária dos que de facto possuem) o acesso a uma panóplia de bens e serviços talvez sem precedentes na história da humanidade. Contudo não creio que essa profusão materialista se tenha, de uma forma geral, traduzido numa maior felicidade ou numa vida mais significativa e satisfatória para uma grande parte das pessoas. Na verdade o consumo de anti-depressivos nunca foi tão elevado. Ao ponto de em alguns países se colocar já em causa a qualidade da água de abastecimento público devido à quantidade de substâncias libertadas por esses fármacos quando ingeridas pelos indivíduos e depois expelidas através da urina.

À parte de toda a relatividade que a questão (ou questões) contém, um facto parece-me evidente e inequívoco: definir a qualidade de vida em termos daquilo que cada indivíduo possui é profundamente errado. A satisfação de determinadas necessidades (e o problema é que assim que umas se encontram satisfeitas logo outras tantas surgem para manter o ratinho consumidor a girar na grande roda do consumo desenfreado), o acesso a determinados bens, pode obviamente contribuir bastante para o bem-estar dos indivíduos. Se nos podemos alimentar bem, ter acesso a uma boa educação, usufruir de bons cuidados de higiene e saúde e se residimos uma zona agradável, limpa e com boas condições ambientais temos, em parte, todas as condições para ter uma boa qualidade de vida. No entanto o conceito de “qualidade de vida” é bem mais amplo do que isso. Há toda uma profusão de factores, condicionantes e dimensões individuais e sociais que são, ou deveriam ser, determinantes para definir os rumos a percorrer por uma determinada sociedade ou civilização no sentido de proporcionar uma boa qualidade de vida a todos os seus indivíduos. Há claro uma importante dimensão “material”, por assim dizer, mas há, ou deveria haver, uma dimensão espiritual ou, se quisermos, emocional ou psicológica.

A maior parte das grandes correntes ideológicas ocupam-se somente da vertente material das questões, nomeadamente em termos de produção de bens. Mas no essencial, por exemplo toda a sociedade consumista capitalista, baseia-se na criação de produtos que visam substituir o vazio espiritual e emocional que essa própria sociedade tem vindo a criar.

Por exemplo. Um dos valores primordiais do sistema capitalista é o culto do individualismo. Mas depois, em virtude do vazio gerado por relações sociais vazias, frias, impessoais, competitivas ou alicerçadas no estatuto, temos de recorrer ao consumo de toda uma profusão de produtos para nos “auto-compensarmos” emocionalmente. É a valorização do que se “tem” em detrimento do que se “é”. Do “ter” em vez do “ser”.

Voltando ao Rio Leça, que está longe de ainda o ser. O Rio Leça é “meramente” um exemplo para enunciar aquilo que aconteceu por todo o nosso país num período histórico relativamente reduzido: O nosso ambiente, as nossas paisagens, viram-se violentamente despidas de quase toda a sua rusticidade, ruralidade e … Natureza.

As cidades transformaram-se numa geografia “morta”, onde já nada se produz, já nada cresce a não ser o cimento e o betão. As cidades encheram-se de hordas e hordas de gentes fugindo da miséria do campo mas esvaziaram-se de … humanidade. Tem-se vindo a exterminar quase tudo o que ainda subsiste de “natural”, de “rural” e nem os próprios espaços ditos verdes o são verdadeiramente (numa perspectiva ecológica, em geral, pouco ou nada recriam de um habitat realmente natural).

As nossas paisagens descaracterizaram-se ao ponto de em tantos e tantos sítios já tão pouco sobrar da sua autenticidade. Os próprios rios …Quase todos os rios foram represados por colossais barragens de betão que lhes retiraram a força e vigor natural de um rio … e um dos últimos rios selvagens que existia ainda em Portugal, para sabermos o que é verdadeiramente e autenticamente um rio … está já a ser aniquilado para produzir a energia que não queremos aprender a consumir com a moderação que a Natureza nos impõe.

Nota

[1] Scheurmann, Erich (2003), “O Papalagui”, Lisboa: Edições Antígona.

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