Dimensão analítica: Família, Envelhecimento e Ciclos de Vida
Título do artigo: A Ironia de Envelhecer
Autora: Marianela Ferreira
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
E-mail: mnferreira@letras.up.pt
Palavras-chave: Envelhecimento Activo, Reforma, Sustentabilidade Social
Quando falamos em envelhecimento da população, remetemo-nos imediatamente para um conceito que pode ser perspectivado quer a nível individual pelo aumento da esperança média de vida que traduz uma maior longevidade dos indivíduos quer ao nível do envelhecimento demográfico, que se define pelo aumento da proporção das pessoas idosas na população total. Assim, nas últimas décadas, devido aos efeitos deste fenómeno, os países europeus, incluindo Portugal, são palco de plurais processos de transformação social [1]. Referimo-nos, entre outros, à recomposição da estrutura etária e alteração das dinâmicas demográficas [2]. Nestas mutações demográficas evidencia-se também a emergência do designado duplo envelhecimento, consequente da redução dos valores absolutos e relativos da população mais jovem (menos de 15 anos) e o aumento significativo dos relativos à população mais idosa (65 e mais anos), derivados do índice de fecundidade e do prolongamento da vida.
No caso concreto de “Portugal integra-se no conjunto dos países que sofreu um envelhecimento mais recente mas mais acentuado, provocado pela redução dos nascimentos a partir da década de oitenta e pelo crescimento da longevidade geracional, o que se reflecte no aumento das proporções de indivíduos com mais de 65 anos logo desde o início da década” [3]. Sendo evidentes as alterações da estrutura etária da população não só pelo aumento significativo do peso relativo do grupo dos 65 e mais anos e do correspondente aos 15-64 anos mas também da redução do grupo etário mais jovem (menos de 15 anos). De acordo com o INE[4], entre 1960 e 2000 em Portugal a proporção de jovens (0-14 anos) diminuiu de cerca de 37% para 30%. Estima-se ainda que o peso da população com 65 e mais anos continue a aumentar em todos os estados membros, principalmente entre o grupo dos designados «velhos mais velhos» (80 ou mais anos). Ainda, segundo a mesma fonte o crescimento deste grupo etário pode quadruplicar tanto na Europa como em Portugal, pelo que o índice de envelhecimento, que em 2009 se situou em 118 idosos por cada 100 jovens, poderá atingir, em 2060, um valor de 271 idosos por cada 100 jovens.
Apesar dos complexos efeitos que este fenómeno acarreta em vários domínios, político, socioeconómico nas sociedades contemporâneas, implicando mesmo uma reorganização societal, a verdade é que todos alimentamos a expectativa de termos um futuro. Nessa medida, não devemos generalizar a representação da velhice como um problema associado à ausência de saúde, desemprego e proximidade da morte. Pois, segundo Bagão Félix [5] pode “ser uma maneira estúpida de abordar a velhice. Ser ancião começa por significar a idade em que, na pessoa humana, o ser assume, em definitivo, primazia sobre o ter e o dar sobre o trocar”.
Pode parecer que estamos a produzir alguma ironia face ao confronto entre as projecções demográficas, as representações sociais da velhice e as expectativas de alcançar uma vida longa com saúde e bem – estar.
O objectivo desde artigo é precisamente a proposta de reflexão sobre estes desafios paradoxais inerentes à actual realidade demográfica.
Assim, segundo a abordagem da sociologia e de outras ciências sociais, onde estas questões são objecto de análise em torno dos seguintes eixos: reconfiguração dos ciclos de vida e dos processos de construção social dos significados da idade; articulação entre envelhecimento e mercado de trabalho [6]; relações entre tempos de trabalho e não trabalho; acções desenvolvidas pelos Estados no sentido do prolongamento da vida activa [2]; modos de gestão das pessoas mais velhas no sentido da sua presença nas organizações económicas [7]; representações e práticas dos trabalhadores mais velhos face às acções dos Estados e àqueles modos de gestão, bem como face à passagem à reforma e às condições de vivência futura desta [8]; aspirações e expectativas dos trabalhadores mais velhos na qualidade de cidadãos, em termos da sua inserção social nas sociedades contemporâneas marcadas pela globalização e pela desinstitucionalização [9]. As análises sociológicas sublinham que a segunda parte da carreira profissional é uma construção social condicionada pela organização dos tempos de trabalho e não trabalho [2]; necessidade de preparar a transição para a reforma através da “criação de condições legais, sociais e de infra-estruturas que a tornem um espaço de renovada liberdade e não uma espécie de eutanásia social ou de antecâmara da morte. É preciso, pois, evitar o tão indesejável efeito – guilhotina pelo qual se passa abruptamente do sentimento de utilidade para um purgatório de inutilidade” [5].
Do ponto de vista meramente legal, a reforma traduz-se num direito social sempre sujeito a mutações. Mas como direito social é essencialmente uma pensão por velhice. Marcador oficial do alcance da idade máxima permitida por lei para continuar a exercer uma actividade profissional. É um direito fundamental que traduz por sua vez, um direito à segurança social e à protecção na velhice. Contudo, pode também traduzir um papel de afastamento; de ruptura com a actividade profissional; de perda de importância profissional; de esquecimento social; de subalternização familiar; de limitações físicas; de perda de auto-estima e de solidão. É um momento facilitador de os indivíduos fazerem um balanço. Questionam a sua biografia em busca do relançamento de um novo projecto de vida. Interpretam o que está para trás para reorientar a sua vida futura. Na medida em que dedicaram grande parte do tempo da sua trajectória de vida ao trabalho.
Este cenário decorre de um conceito com mais de 40 anos e só pode ser invertido criando condições de evitar uma ruptura abrupta com a actividade. Assegurando o sentimento de participação e utilidade social.
Assistimos, nos nossos dias, a um verdadeiro duelo entre demografia e segurança social. Na realidade, quando a institucionalização das seguranças sociais emerge, a realidade demográfica era mais equilibrada e robusta. Hoje, constitui uma ameaça à solidariedade intergeracional e à própria justiça entre gerações [10]. Pois, o impacto do envelhecimento demográfico é tal que no domínio da segurança social é inevitável criar uma base mais alargada de protecção social que fomente níveis mais elevados de emprego e a revisão dos sistemas de protecção social para que estes possam ser mais sensíveis às alterações da estrutura etária.
Por tudo isto, é sabido, que as políticas de pensões sociais só poderão sobreviver com o forte investimento no envelhecimento activo e pelo crescimento das taxas de emprego.
Parece-nos inevitável a redefinição da intervenção política, a reconfiguração da atitude dos indivíduos e da organização das sociedades para “caminhar de uma população activa para o conceito mais alargado e mais solidário de sociedade activa, onde a solidariedade seja um património adquirido e onde os mais velhos, depois de uma vida de trabalho, não sejam encarados como um passivo ou fardo para os outros” [5].
Notas
[1] Crouch, Colin (1999) – Social Change in Western Europe. Oxford: Oxford University Press.
[2] Guillemard, A-M. (2003), L’âge de l’ émploi, Les Sociétés face à Vieillisement. Paris : Ed. Armand Colin.
[3] Fernandes, A.A. (coord.) (2007), Envelhecimento e Perspectivas de Criação de Emprego e Necessidades de Formação para a Qualificação de Recursos Humanos. Lisboa: IEFP. p.22.
[4] INE (2010), Estatísticas Demográficas 2009. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística, IP.
[5] Félix, A. B. (2002), Do lado de cá ao deus-dará. Lisboa: Ed. 2002, pp148-150.
[6] Naegele, G.; Walker, A. (2006) – A guide to good practice in age management [Em Linha] EUROFOUND [Consult em: 1 Set. 2008] Disponível em: http://www.eurofound.europa.eu/pubdocs/2005/137/en/1/ef05137en.pdf.
[7] Mendes, F.R. (2005), Conspiração Grisalha – Segurança Social, Competitividade e Gerações. Oeiras, Celta.
[8] Walker, A.; Taylor, P. (1998), Combating age barriers in employment: A European portfolio of good practice. Dublin, EUROFOUND.
[9] Taylor, P. (2006), Developments in employment initiatives for an ageing workforce. Dublin. EUROFOUND.
[10] Mendes (2011), Segurança Social: O Futuro Hipotecado. Lisboa: Fundação Francico Manuel dos Santos. Ensaios da Fundação.