Medicalização: A cada um o seu diagnóstico

Dimensão analítica: Saúde

Título do artigo: Medicalização: A cada um o seu diagnóstico

Autora: Felismina Mendes

Filiação institucional: Universidade de Évora

E-mail: fm@uevora.pt

Palavras-chave: Medicalização, Medicina, Sociedade

A medicalização descreve o processo através do qual os problemas sociais são descontextualizados, redefinidos e (re)convertidos em problemas médicos. Analisar a medicalização remete para o processo social imbricado na produção cultural das categorias médicas ou seja, na construção do conhecimento (bio)médico, na extensão do controle social daí decorrente e na expansão dos domínios da profissão médica. Na acepção clássica, a medicalização refere-se ao processo social pelo qual um comportamento humano é transformado num problema médico e uma condição natural ou desviante adquire legitimidade pelo diagnóstico e tratamento clínico especializado. No caso das condições desviantes, opera-se de imediato uma mudança social do julgamento moral, através deslocação da culpa individual para a “nova doença”.

Face à medicalização da sociedade, a preocupação não reside em descobrir se um fenómeno é realmente um problema de saúde, mas sim em analisar os processos pelos quais a medicalização se acentua, alastra e penetra em todas as áreas do quotidiano dos indivíduos. Este crescimento da medicalização não se consubstancia apenas no aumento do poder médico, mas também no desenvolvimento da indústria biotecnológica e farmacêutica e no aumento da burocratização do complexo médico-industrial [1]. Este, possibilitou não só a ampliação dos mercados médicos e a corporalização dos cuidados de saúde, como fez emergir amplas mudanças na saúde, de que se destacam a efectiva diminuição da regulação pública do medicamento, simultânea à liberalização da promoção e publicitação do mesmo e uma maior receptividade leiga às novas intervenções médicas propostas [2].

A análise das ligações entre o mercado, os cuidados de saúde e a medicalização permite decifrar os velhos rumos e as novas direcções deste processo. Com essa finalidade, alguns autores identificaram os mercados associados à indústria biotecnológica e farmacêutica, onde os doentes dão lugar aos consumidores e o domínio médico cede lugar ao domínio do mercado dos cuidados de saúde, como os principais motores da medicalização na actualidade [3]. Se, por um lado, estas empresas desenvolvem estratégias para expandir os seus produtos no mercado (caso do Viagra para a disfunção eréctil e do Prozac ou Paxil para as desordens de ansiedade social), por outro lado, esses mercados também são guiados pela procura dos consumidores (caso da Hormona de Crescimento Humano para a baixa estatura idiopática, da Fertilização In-Vitro para o tratamento da infertilidade, do Ritalin [4] para a défice de atenção por hiperctividade) que desejam melhorar a sua saúde, a sua aparência, o seu bem-estar físico e psicológico e as suas performances intelectuais.

Se as diferentes abordagens da medicalização convergem em primeira instância para a análise das questões do poder, domínio e autoridade da profissão médica, numa segunda instância alertam para a complexidade do processo de medicalização, na medida em que ele não se reduz a uma mera categorização de novos problemas médicos protagonizada pelos profissionais de medicina, mas também abrange a participação, o envolvimento activo e a adesão por parte dos indivíduos, grupos de interesses leigos e movimentos sociais [5].

São vários os exemplos (stress pós-traumático, parto, alcoolismo) que revelam que o processo de medicalização foi inicialmente desencadeado por movimentos sociais (Veteranos do Vietname, Feministas, Alcoólicos Anónimos) e só mais tarde se consubstanciou em categorias médicas, através do envolvimento profissional.

O processo de medicalização tem revelado que a par do trabalho de categorização médica apoiado nas novas tecnologias e biotecnologias médicas, existe um trabalho deliberado dos leigos para criar uma definição médica e para moldar, validar, legitimar e institucionalizar o diagnóstico clínico de uma condição que afecte um determinado grupo [6]. O objectivo a atingir é usufruir dos direitos inerentes à condição de doente (legitimação médica e social do problema, tratamentos, direitos laborais e alívio no cumprimento das obrigações quotidianas). O diagnóstico médico legitima e dá acesso a uma nova identidade onde a doença assume lugar central.

Se não se pode ignorar o envolvimento mínimo dos médicos no processo de medicalização de problemas relativos ao alcoolismo, à adição opiácea, às injecções letais para execuções criminais e à adição sexual e, de noutros casos, a medicina se apresentar efectivamente relutante e passiva, a ciência médica moderna envolveu-se de forma activa no processo de medicalização de diferentes condições de que a hiperactividade, as dificuldades de aprendizagem, o sono, a infertilidade, o nascimento, o envelhecimento, a morte, a menopausa, a reprodução e a síndrome pré-menstrual, a andropausa e a disfunção eréctil, os comportamentos alimentares e a baixa estatura, são apenas alguns exemplos.

De facto, existem, diferentes graus de medicalização. Se há condições totalmente medicalizadas (ansiedade, envelhecimento, morte), existem outras parcialmente medicalizadas (menopausa, disfunção eréctil) e algumas condições poucos medicalizadas (adição sexual, abuso conjugal). Estes diferentes graus de medicalização estão associados a factores como a falta de apoio da profissão médica, a disponibilidade e a rentabilidade das intervenções médicas, a descoberta de novas etiologias, a competição pelas definições médicas e a cobertura dos custos dos cuidados, pelos seguros de saúde.

Actualmente, assiste-se ao emergir da biomedicalização alicerçada nos conhecimentos da biotecnologia. O exercício desta nova forma de medicalização concretiza-se em intervenções que procuram não só tratar, aperfeiçoar ou normalizar, mas medicalizar a própria vida.

Notas

[1] Clarke, A. E. [et al.] (2003), Biomedicalization: Technoscientific Transformations of Health, Illness, and US Biomedicine, American Sociological Review, 68 (April), pp. 161–94.

[2] Moynihan, R.; Cassels, A. (2005), Selling Sickness: How the World’s Biggest Pharmaceutical Companies are Turning us all into Patients, New York: Nation Books.

[3] Conrad, P.; Leiter, V. (2004), Medicalization, Markets and Consumers, Journal of Health and Social Behavior, 45 (Extra Issue), pp. 158-176.

[4] Nos EUA, em 1970, cerca de 350 mil crianças com idades entre os 6 e os 11 anos e com diagnóstico de défice de atenção por hiperactividade, tomavam Ritalin. Em 2006 o número era de cerca de 6 milhões. Para a indústria farmacêutica os lucros com o Ritalin cresceram 700%, entre 1990 e 1999.

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2 Respostas a Medicalização: A cada um o seu diagnóstico

  1. Ruthe diz:

    Estou escreve uma dissertação de mestrado sobre medicalização e seus efeitos na relação médico-paciente. Achei muito interessante seu artigo. Gostaria de saber mais a respeito de sua pesquisa.
    Obrigada!
    Ruthe

  2. Ruthe diz:

    GOSTARIA DE SABER DA REFENCIA [5] CITADA EM NOTAS.

    OBRIGADA!
    Ruthe

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