Linguagem inclusiva – I Parte

Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social

Título do artigo: Linguagem inclusiva – I Parte

Autor: Hernâni Veloso Neto

Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

E-mail: hneto@letras.up.pt

Palavras-chave: Estereótipos; Discriminação; Linguagem inclusiva.

O mote para este artigo de opinião é uma passagem de uma das obras de Paulo Freire [1]. O autor escrevia no livro “Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido” que não se pode considerar puro idealismo que se fique à espera que o mundo mude para que se vá mudando a linguagem e os preceitos comunicacionais que se utilizam. “Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo” é a frase chave da passagem da obra referida e também o vai ser deste texto, surgindo, por isso mesmo, repetida ao longo do texto.

Paulo Freire não se ofenderá que se faça esta apropriação, porque o intuito é demonstrar que a mudança do mundo começa em cada ser humano, desde que este o queira. “Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo”, especialmente quando os conteúdos linguísticos utilizados estão impregnados de estereótipos e preconceitos que suscitam situações de discriminação social. Cada pessoa tem um papel desempenhar e não precisa de ficar à espera que outros comecem a mudar a sua forma de agir para que também se introduza mudanças na vida pessoal tendo em vista corrigir situações de discriminação que se realizavam e se reconheciam há muito como tal. O próprio Paulo Freire escolheu ser um agente de mudança, efectuando uma espécie de mea culpa, reconhecendo que a linguagem podia ser uma fonte de discriminação e que ele personificava um exemplo vivo dessa situação, já que ao longo da sua vida tinha emprestado uma linguagem machista nos seus textos, uma linguagem que discriminava as mulheres. É uma circunstância que não deixa de ser curiosa, tendo em conta que o autor tinha escrito uma obra sobre os oprimidos e esqueceu-se de um dos grupos sociais que mais foi alvo de opressão ao longo da história da humanidade, as mulheres.

Hoje mais do que nunca fará sentido um grito de alerta e uma tentativa de consciencialização do impacto negativo que a linguagem pode ter nas relações sociais. A linguagem é uma forma de expressão que foi inventada pelos seres vivos, em geral, e pelos seres humanos em particular, para poderem comunicar entre si. A linguagem nas sociedades humanas é o foco desta reflexão, mas convém não descurar que os diferentes grupos biológicos possuem um sistema próprio de comunicação. É uma circunstância que ajuda a reforçar a ideia que a linguagem não é um elemento natural, uma condição que emana da natureza, mas sim uma construção social, e que é um produto proteiforme dos diferentes grupos sociais que compõem as sociedades humanas (varia de grupo social para grupo social).

Como é uma construção dos grupos sociais, é um elemento que emana da natureza social, da natureza construída e reificada pelos seres humanos, reflectindo as características particulares dos grupos em causa, sendo, por isso mesmo, considerada como um factor de distinção social, um marcador social de identidade colectiva e uma forma, porventura a principal, de expressão ideológica.

O filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin [2] também defendia que a linguagem é um lugar privilegiado da manifestação ideológica, na medida em que está sempre engajada numa intencionalidade (não é neutra nem inocente). As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. Como é uma manifestação ideológica em si mesma, acaba por ser o principal vector de socialização e de reprodução social, contribuindo também para que se perceba porque o sistema comunicacional humano tenha evoluído significativamente desde os primórdios da humanidade, acompanhando as transformações societais que se verificaram no planeta, mas os sinais convencionais que serviam para a expressão dos pensamentos e sentimentos das gerações anteriores continuam a serem utilizados na actualidade.

O facto de ser um dos principais mecanismos de reprodução social implica que, forçosamente, seja um dos principais veios de reprodução de estereótipos e, implícita ou explicitamente, de produção de discriminação social. A manifestação ideológica e a discriminação social ocorrem com muita mais frequência do que a maioria das pessoas pensa, já que a comunicação oral (a forma de linguagem mais utilizada pelos seres humanos), é a principal base de interacção social e muitas vezes as pessoas nem têm a real noção das palavras que proferiram, porque a espontaneidade neste tipo de comunicação é considerável. Nas outras formas de linguagem (escrita, gestual) também se pode suceder o mesmo, mas a espontaneidade é muito menor.

As formas de conjugação gramaticais, os palavrões, os provérbios, entre outros recursos linguísticos, continuam a configurar relações sociais de dominação entre grupos sociais, nomeadamente entre sexos, reforçando as desigualdades sociais de género. Os exemplos são diversos e continuam a ser retratados no quotidiano das sociedades, perfeitamente visíveis nas interacções diárias, na comunicação social ou na literatura especializada [e.g., “a casa é das mulheres e a rua é dos homens” (delimitação das esferas de vida]. A forma de corrigir estas situações de desigualdade social passa, em primeira instância, por um processo civilizacional de auto-reflexão sobre os preceitos comunicacionais utilizados. No fundo, esse exercício reflexivo é um dos principais intuitos inerentes a este texto, ou seja, contribuir para que as pessoas ponderem sobre a linguagem que utilizam. Apenas esse momento de introspecção é que lhes permitirá perceber se o conjunto de sinais convencionais que utilizam para expressar os seus pensamentos e sentimentos (linguagem) respeita a dignidade dos demais seres humanos.

A utilização de uma linguagem inclusiva é um preceito que contribui para acabar com séculos de legitimação de uma discriminação sexual. Num artigo a publicar posteriormente evidenciar-se-á algumas estratégias para que cada um possa encetar a mudança, por via da utilização de uma linguagem inclusiva, e não fique à espera que o mundo mude para mudar a forma como comunica.

Notas

[1] Freire, Paulo (1992), Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

[2] Bakhtin, Mikhail (1981), Marxismo e filosofia de linguagem, 2ª edição, São Paulo: Editora Hucitec.

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