Habitação e a questão dos devolutos: o dilema entre a reabilitação urbana e a construção nova

Dimensão analítica: Ambiente, Espaço e Território

Título do artigo: Habitação e a questão dos devolutos: o dilema entre a reabilitação urbana e a construção nova

Autor: Luís Mendes

Filiação institucional: CEG/IGOT-ULisboa

E-mail: luis.mendes@edu.ulisboa.pt

Palavras-chave: habitação, devolutos, reabilitação urbana.

Na última década, o aumento do preço das casas e dos valores das rendas excedeu em muito o relativo aumento dos rendimentos das famílias (quase três vezes mais), aumentando o fosso entre o preço da oferta e a capacidade da procura de a esta aceder, agravando as taxas de esforço e desequilibrando as capacidades de sustentabilidade dos orçamentos familiares.

Mas será realmente a falta de casas a razão principal para a crise de habitação? Como se podem baixar os preços das casas?

Desde logo é necessário aumentar significativamente a oferta pública de habitação, de forma a regular o mercado e absorver a imensa procura insolúvel existente, para além de desenvolver uma nova geração de cooperativismo habitacional para o século XXI. O PRR articulado com as Estratégias Locais de Habitação tem permitido fazer isto, mas a ritmos inferiores aos exigidos pela crise habitacional emergencial e de forma frágil para, efetivamente, garantir regulação indireta do mercado.

Para isso, é necessário que o Estado Central e as Câmaras Municipais mobilizem e valorizem o património imobiliário devoluto, público e privado, com vocação residencial e promovam a sua manutenção ou reabilitação, de modo a salvaguardar uma utilização plena no cumprimento da função social da propriedade, sobretudo tendo em conta as necessidades das populações mais vulneráveis ou em risco social, dando prioridade aos despejados ou em situação de despejo. Ainda que fundamentalmente financiado por dinheiros públicos, não se exclui a criação de incentivos fortes aos particulares que façam o mesmo com o seu património.

Para fazer cumprir este novo modelo de habitação social, pública e acessível, aproveitando a oportunidade estrutural oferecida pelo PRR, há que estancar a alienação de propriedade pública vocacionada para habitação e os municípios devem fazer uso dos instrumentos legais e contratuais ao seu dispor para, com urgência, ter atuação reguladora de mercado. O Estado não deve também prescindir da possibilidade de exercer os direitos de preferência e de tomada de posse administrativa que lhe assiste, bem como de facilitação da usucapião, em relação a edifícios que se considerem nucleares para a organização de dinâmicas urbanas locais, suscetíveis de contribuir para a efetivação do direito à habitação.

O Estado pode ainda utilizar outros instrumentos jurídicos e administrativos neste âmbito para incentivar o aumento da habitação e do arrendamento acessível, tais como: as obras coercivas e o uso de imóveis públicos ou privados em regime de comodato ou cedência de direito de uso. As obras coercivas são medidas aplicadas pelo Estado para obrigar os proprietários a realizarem obras de reabilitação ou construção em imóveis devolutos, degradados ou subutilizados. Essas medidas têm como objetivo combater a especulação imobiliária e promover o uso efetivo do solo urbano. No que diz respeito ao regime de comodato ou cedência de direito de uso, o Estado cede o uso de imóveis gratuitamente ou por valores simbólicos, por determinado período, a entidades públicas, cooperativas, associações ou empresas com fins sociais, para projetos de habitação acessível, no quadro também de parcerias público-comunitárias. Por exemplo, um município cede um edifício devoluto a uma associação que, com financiamento público ou comunitário, o reabilita e gere um projeto de habitação acessível. Ou, o próprio Estado cria um banco de imóveis públicos para cedência temporária a promotores privados com obrigação de manter rendas acessíveis.

Sendo compreensível e inevitável a redução do investimento na construção de edifícios novos, destinados a habitação permanente, a reabilitação urbana surge como paradigma inevitável, pelo que a tendência de alimentar a construção nova acabará por ser extemporânea, pois a emergência de resolver a crise habitacional é de curto prazo. Não existe falta de casas em Portugal. Somos o país da OCDE com maior superávite de casas por família. O número de casas excede 1 milhão e meio o número de famílias. O grande problema é que grande parte destas casas são devolutas privadas e não estão no mercado por diversas razões. Cabe ao Estado ser mais intervencionista e, por via fiscal e do ordenamento do território, penalizar fortemente estes devolutos e criar condições para que os privados coloquem no mercado os seus também.

Neste momento já é possível ter uma estimativa objectiva e categórica do número de devolutos total no país e em Lisboa, pois esse número é-nos facultado pelo recenseamento populacional de 2021. Em 2011 eram perto de 735 mil e, neste momento, com os resultados dos censos de 2021, estão na ordem dos 725 mil a nível nacional, 150 mil na Área Metropolitana de Lisboa, sendo que destes últimos, 47 mil localizam-se na cidade de Lisboa e destes 2 mil são propriedade do Estado Central e Câmara Municipal. O número, que foi aumentando consecutivamente nas últimas décadas, só diminuindo na última, prende-se com uma tendência que sugere a existência de um mercado de habitação muito vocacionado para a construção de habitação nova, para um crescimento do número de alojamentos vagos e para a existência de alojamentos familiares que não se destinam a residência habitual, mas a segunda residência de férias ou de ocupação temporária/sazonal. Revela também uma dependência de crescimento da economia portuguesa, nacional e local, à custa das dinâmicas do imobiliário ligadas à nova construção, em detrimento da reabilitação urbana do edificado existente, ainda que a política de habitação aposte no paradigma da requalificação e reabilitação do edificado existente e da atração do edificado devoluto para o voltar a colocar no mercado.

A crise de habitação tem sido amplamente reconhecida como um dos desafios socioterritoriais mais significativos do século XXI, afetando populações em diferentes contextos económicos e geográficos. Só uma política pública assente num modelo holístico e multidimensional do setor habitacional, destacando a interconexão entre fatores estruturais, económicos e regulatórios que influenciam a oferta e o acesso à habitação poderá ter sucesso em garantir um acesso universal, incondicional e inalienável a este direito humano. Neste contexto, a crise de habitação deve ser compreendida não apenas como uma questão de escassez de habitação, mas como um problema sistémico de acesso global a habitação acessível, que envolve múltiplas variáveis interdependentes, dificultando a sua resolução por meio de medidas isoladas. Uma política pública de habitação consequente implica assim um caleidoscópio multiescalar, multicritério, multi stakeholder, multifatorial, de medidas que se interpenetram e executam em variados planos, ritmos e temporalidades do planeamento e ordenamento do território. A mobilização dos devolutos e de stock habitacional subutilizado faz parte desta solução pluriescalar.

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