Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: A Sociologia salva vidas
Autora: Maria João Oliveira, Inês Barbosa
Filiação institucional: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
E-mail: mjoliveira@letras.up.pt ; inesbarbosa@letras.up.pt
Palavras-chave: Sociologia, ciência cidadã.
Não foi por falta de aviso. Ouvimos falar do colapso do sistema de circulação do oceano Atlântico, mas nada se fez. Continuámos a emitir CO2 como se não houvesse amanhã. Mas o dia depois de amanhã chegou. Agora estamos numa nova idade do gelo. O nosso país, outrora abençoado por um clima temperado, rapidamente mergulha num caos climático e ambiental. Entre o inverno eterno do interior e a devastação da costa devido à subida drástica dos níveis do mar, Portugal continental tornou-se inabitável. (…)
“O Barco Salva-Vidas: debate pela sobrevivência”, Noite Europeia dos Investigadores – NEI 2024, Porto, i3S, 27 de setembro.
Sob a premissa de um cenário de caos climático e ambiental, a Sociologia foi convidada a participar na “festa” da Ciência e da Tecnologia em Portugal, uma iniciativa que visa aproximar os investigadores e a ciência da sociedade. Os sobreviventes do desastre ambiental (isto é, o público) estão dispostos a ouvir cientistas e a ceder o último lugar disponível no barco salva-vidas àquele que seja capaz de demontrar que o seu trabalho será mais providencial na construção de uma nova sociedade.
Afinal, o que é a Sociologia? Esta questão, tão breve e tão elementar, sabem os/as sociólogos/as, não é de fácil elucidação. Vejamos o que dizem os principais dicionários online, numa breve tentativa de encontrar uma resposta suficientemente simples para um público não especializado:
“estudo científico das sociedades humanas e dos factos sociais.” [1]
“ciência que se dedica ao estudo dos fenómenos sociais, com base em dados diversos, de origem estatística, linguística, histórica, demográfica, etnográfica, sociográfica, etc.” [2]
“ciência que estuda os factos e fenómenos sociais humanos considerados na sua especialidade, no seu conjunto e na sua generalidade.” [3]
Referindo-se a “sociedades”, “factos sociais”, “fenómenos sociais” ou “dados diversos”, os exemplos ilustram como aquilo que queríamos de simples explicitação permanece pouco esclarecedor, sobretudo para um público não académico. Seguimos, por isso, recuperando textos-síntese, que trabalhamos com estudantes do primeiro ano da licenciatura, numa tentativa de nos tornarmos inteligíveis em, apenas, dois minutos. Adensamos a nossa apresentação destacando a Sociologia enquanto área científica particularmente útil para “estudar”, “analisar” ou “compreender” o comportamento humano em sociedade, as suas causas, as suas lógias e processos subjacentes. Mas será alguém convencido pelo potencial de uma ciência com “particular propensão para a reflexividade” [4]?
Esclarecer porque razão a Sociologia não só é muito relevante para a leitura do real social, mas também que contributo efetivo abarca, não é tarefa fácil. Firmino da Costa [4] descrevia nos anos noventa do século passado o incómodo, até para profissionais experimentados, de explicar o que é a sociologia e para que serve, sobretudo em relação a outras áreas do saber. A questão crítica para a Sociologia, esclarecia o mesmo autor, não estaria na resposta, mas na questão que se coloca e que reflete a parca familiaridade social entre o público e esta área do saber.
Mais de trinta anos volvidos desde a publicação, o distanciamento da sociedade portuguesa em relação a esta área de conhecimento reduziu bastante. A presença corrente de sociólogos/as nos media é, talvez, o lado mais visível da aproximação quotidiana da sociologia com a sociedade. Mas será esse conhecimento suficientemente próximo (e prático!) para convencer o público sobre o papel decisivo da Sociologia num cenário de crise, onde os problemas sociais são tendencialmente exacerbados?
Se poucas dúvidas persistem sobre o produto científico do conhecimento sociológico, explicar o seu saber prático permanece tão mais difícil quanto continuamos a rejeitar – e bem – a cultura de dissociação entre ciência e profissão [5]. Explicar a relação da sociologia com a sociedade é, por isso, explicar simultaneamente as relações de observação e análise, de participação e intervenção [6].
De forma metafórica, mas suficientemente simples para o público, precisaríamos de um/a sociólogo/a de família que, tal como o/a médico/a, seja o pilar fundamental na relação entre o indíviduo e o contexto social, com base no pressuposto fundamental de que o indivíduo e a sociedade não são entidades separadas. Uma figura que aproxime a Sociologia dos cidadãos e que, no campo de observação e análise, é capaz de vestir a bata de uma mais efetiva prática de Ciência Cidadã, desde logo, como se reflete num outro texto, enquanto “espaço aberto de experimentação e consolidação de um conjunto de práticas participativas na esfera da ciência “fundamental” [7]. Um agente social que, no domínio da participação e intervenção, atua no campo das relações interpessoais, comunitárias e familiares, com uma abordagem prática e orientada para a resolução de problemas sociais quotidianos (e.g. dinâmicas de poder, situações de discriminação, entre outras). Um agente que faz um acompanhamento continuado do seu entorno e que tem uma abordagem holística, tal como um/a médico/a de família.
Em suma, um/a sociólogo/a de família que ao identificar e prever padrões de comportamento, propõe estratégias de prevenção e resposta à crise; que contribui para o planeamento urbano, propondo estruturas que promovam o comportamento coletivo, a convivência pacífica e a sustentabilidade; que em contexto de pobreza e escassos recursos, propõe formas de organização e práticas de distribuição dos recursos mais cooperativas e solidárias; que ao estudar questões de discriminação e violência, ajuda a reconstruir o tecido social, propondo práticas e políticas mais justas e inclusivas; que ao compreender, de forma única, os fenómenos simbólico-ideológicos, é essencial na construção de sociedades mais democráticas, críticas, conscientes e capazes de fugir aos discursos populista e de ódio, tão característicos dos cenários de crise.
“A Sociologia salva vidas” porque, ao compreender como as sociedades mudam e se adaptam a novas realidades, ajuda a evitar que o caos nos leve de volta aos erros do passado ou ao colapso duradouro.
Notas:
[1] “sociologia” In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/sociologia
[2] “sociologia” In Infopédia – Dicionário da Porto Editora [em linha], https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/sociologia
[3] “sociologia” In Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa, Disponível em https://dicionario.acad-ciencias.pt/pesquisa/sociologia
[4] Costa, Firmino (2003), Sociologia, 4ª. ed., Lisboa: Quimera Editores, pp. 20
[5] Mineiro, João (2015), Ciência, profissão e empregabilidade: três teses sobre a relação entre a sociologia e o mercado de trabalho. Sociologia online, 9. URL https://revista.aps.pt/pt/ciencia-profissao-e-empregabilidade-tres-teses-sobre-a-relacao-entre-a-sociologia-e-o-mercado-de-trabalho/
[6] A este propósito, lembramos que as inquietações em torno do papel transformador da Sociologia estão já sobejamente exploradas em textos clássicos como o de M. Burawoy, a propósisto da sociologia pública, mas também de A. Gramsci, a propósito do papel dos intelectuais na sociedade e na política; ou, ainda antes, de K. Marx, para quem a reflexão não bastaria a transformação da realidade.
[7] Oliveira, Maria João; Queirós, João (2022), Da ciência social à ciência social cidadã: contributos para a problematização de um conceito, Working Papers IS-UP, 4.ª série, 95. Disponível em https://isociologia.up.pt/bibcite/reference/1162
.
.