Dimensão analítica: Cidadania, Desigualdades e Participação Social
Título do artigo: “Basta!”: Mafalda recita Durkheim em sala de aula
Autora: Cláudia Carvalho Amador
Filiação institucional: Católica Porto Business School
E-mail: camador@porto.ucp.pt
Palavras-chave: teoria social, mudança social, desigualdades.
A 30 de setembro de 2020, a morte do argentino Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido por Quino, foi divulgada através de vários meios de comunicação social. Nas horas seguintes, surgiram várias homenagens através da sua personagem mais carismática: a inconformada e contestatária Mafalda, uma menina de apenas 6 anos, fã de panquecas, que adorava os Beatles e detestava comer sopa. Estas características conferem-lhe algo em comum com muitos de nós, acrescentando-se a sua preocupação com a situação social, as injustiças no mundo e o futuro da Humanidade.
Crítica social e política numa sociedade em mudança
Figura 1 – Basta!
Fonte: Pinterest
O que têm em comum personalidades como Quino (e a sua Mafalda) e teóricos como Émile Durkheim? Numa resposta que certamente peca pela simplicidade, atrevemo-nos a sugerir a preocupação com a sociedade através de uma perspetiva crítica, inspiradora e intemporal.
Ambos viveram em sociedades urbanas, caracterizadas por uma forte instabilidade política e uma crença na possibilidade de um mundo melhor, assente na noção de progresso. Atenda-se, no caso de Durkheim, à realidade da III República, em França, marcada por fortes conflitos, mas também por um grande otimismo devido às grandes invenções da época como a eletricidade, o avião e o cinema [1]. Por sua vez, a obra de Quino reflete as profundas transformações da década de 60, a crítica constante aos regimes políticos, a luta pela igualdade social na América Latina e, paralelamente, pelos movimentos pacifistas e pela luta pelos direitos civis [2].
O que os une é, acima de tudo, a preocupação com as mudanças que transformavam a sociedade do seu tempo. A sua leitura e contributos são diferentes, mas ambos transmitem a sua preocupação com questões fundamentais para a Sociologia: como contribuir para um mundo melhor, uma sociedade mais igualitária, na qual os valores da comunidade estejam acima dos valores individuais.
Mafalda recita Durkheim: juntos por um mundo melhor
O primeiro passo para tornarmos o mundo melhor é compreendermos o que se passa à nossa volta. Um dos legados de Durkheim foi ter contribuído para o carácter científico da Sociologia através do princípio básico de “estudar os factos sociais como coisas”. Ora, para a análise da vida social, o questionamento dos factos sociais através de um método empírico é imprescindível, mas como explicar a alunos de primeiro ano, recém-chegados à Universidade, e a frequentar licenciaturas de Economia e de Gestão, a importância desta máxima? O papel da personagem criada por Quino pode ser fundamental. Ao associarmos alguns dos conceitos mais conhecidos de Durkheim com a banda desenhada da Mafalda conseguimos não só discutir a sua conceção, mas também associá-los à realidade portuguesa e perceber a sua importância na compreensão do todo social.
Comecemos pela compreensão do conceito de facto social, que se define como “formas de agir, pensar ou sentir que são externas aos indivíduos” (2004:9) [3] e que exercem, de forma praticamente impercetível, um poder coercivo que obriga os atores sociais a seguir padrões que são comuns na sociedade.
Vejamos a Figura 2, na qual é possível compreender a potência opressiva da sociedade que educa crianças para desenvolverem determinados comportamentos e maneiras de ser. Aqueles que não partilhassem esses padrões de comportamento comuns seriam castigados ou passariam por algum tipo de dificuldade ou constrangimento. Neste caso, o facto de uma menina não gostar dos Beatles teria não só levado à perplexidade por parte dos colegas que não compreendem o porquê desta atitude (já que parecia que todos gostavam de Beatles, inclusive a Mafalda), mas também a um momento constrangedor para a menina que se vê rodeada de olhares inquisitórios, sem saber o que poderá acontecer.
Figura 2 – Mafalda e os Beatles
Fonte: Clube da Mafalda
Durkheim reconhecia a dificuldade de se analisar os factos sociais, na medida em que estes não são visíveis nem tangíveis, mas considerava que tal era possível e obrigava a abandonar os nossos próprios preconceitos e ideologias. Quando pedimos aos nossos alunos que analisem, por exemplo, o papel da Economia na sociedade, reforçamos a importância de reconhecer os riscos das suas (e nossas!) ideologias na análise que vão efetuar. Neste caso, a Figura 3 ajuda a perceber melhor a força das nossas próprias ideologias no nosso quotidiano quando observamos o cuidado demonstrado pela personagem do Manolito (Manuelinho, em português de Portugal), ao limpar a máquina de registar. Perante a surpresa dos seus colegas de turma, a própria personagem remete para a liberdade de culto existente no país que lhe permite, neste caso, adorar o próprio dinheiro [4].
Figura 3 – Liberdade de culto
Fonte: Mafalda BR
Um outro conceito de fulcral importância na obra de Durkheim é o conceito de valor moral ou moralidade. Para Durkheim, é moral “tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o homem a contar com outrem, a reger os seus movimentos com base em outra coisa que não os impulsos do seu egoísmo, e a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e mais fortes são esses vínculos” (1999:8) [5]. Desta forma, quando falamos de valores não estamos a falar em valores de mercado, mas sim de valores e crenças comuns a um conjunto de pessoas, grupos ou sociedades e que contribuem para a coesão social. Durkheim acreditava que a moralidade da sociedade derivava da subordinação do interesse individual ao interesse coletivo.
Mais uma vez, a personagem do Manolito (Figura 4), que tinha como grande sonho fazer negócio na mercearia do pai, surge como um bom mote para a análise, quando afirma que os únicos valores que “servem para alguma coisa” são os de mercado e não os valores morais, espirituais, artísticos ou humanos, como sugeria Mafalda. O questionamento de Mafalda corresponde à nossa vontade de questionar os próprios alunos sobre a sobrevalorização dos valores económicos sobre os valores morais. A figura de Manolito, uma personificação de um pequeno capitalista, corresponde na perfeição ao impacto dos valores económicos na sociedade contemporânea [6].
Figura 4 – Os valores que interessam
Fonte: Clube da Mafalda
Atualmente, é reconhecido o otimismo de Durkheim face às transformações que foram ocorrendo na sociedade; contudo, não deixa de inspirar, tal como Mafalda, a possibilidade de um mundo no qual todos vivêssemos em “fraternidade humana” [7] (como diria Durkheim) ou em “paz e amor” (nas palavras de Mafalda presentes na Figura 5).
Figura 5 – Mafalda e a paz no mundo
Fonte: Clube da Mafalda
Notas e Bibliografia:
[1] Ver Sell, C. (2007). Sociologia Clássica, 4ª edição, Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí.
[2] Ver Ávila, G. (2009). “1968”: ideologia e contestação através das tiras da Mafalda. Porto Alegre: Trabalho de conclusão do curso.
[3] Giddens, A. (2004). Sociologia, 4ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
[4] Ver Simmel, G. (2015). Psicologia do Dinheiro e Outros Escritos, Lisboa: Edições Texto & Grafia.
[5] Durkheim, É. (1999). Da divisão do trabalho social, 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes.
[6] Ver Fevre, R. (2003). The New Sociology of Economic Behaviour, Londres, Sage Publications.
Sites consultados:
http://clubedamafalda.blogspot.com
https://www.facebook.com/MafaldaBr/
https://www.pinterest.es/pin/462252349255092897/
.
.