Dimensão analítica: Educação e Ciência
Título do artigo: O que é a Escola para lá das Ciências Sociais?
Autor: António Pedro Dores
Filiação institucional: ISCTE-IUL
E-mail: apad@iscte-iul.pt
Palavras-chave: Escola, ciências sociais, inovação.
Vivem-se tempos de transformação, embora as nuvens ecológicas e morais nos surjam negras. Transformação deixou de ter uma conotação progressista desde o momento, nos anos oitenta, em que passou a ser o neoliberalismo a reivindicar o futuro. Em contraponto há os/as que apelam à resistência, já não à criatividade e à imaginação. A xenofobia e o racismo, a violência e a retaliação, numa palavra a irracionalidade, ganham foros de cidadania. As políticas de opressão tornaram-se uma forma de sinceridade apreciada pelos/as eleitores. Fartos/as de falsas promessas e de corrupção, tornaram-se masoquistas.
Entre os profissionais sociais, há os que parecem alheios às ansiedades do nosso tempo. Outros desenvolvem os seus trabalhos orientados pela empatia com os e as oprimidos/as. São também eles/as mesmos oprimidos/as, pessoalmente. As ciências sociais são, actualmente, um modo de saber a meio caminho entre a filosofia social e a descrição ingénua da superfície da experiências observadas nos outros.
Com as ciências sociais, mostrou Foucault, o saber está ao serviço do poder. Em particular, está ao serviço do estado (Kuhn, 2016) [1]. Idealizado como protector dos/as oprimidos/as, o estado é, sobretudo, um modo de organização misógino e hierárquico que se constituiu em centro de opressão classificatória e funcional. Infelizmente reverenciado acriticamente pelas ciências sociais, sejam elas académicas, críticas ou profissionalizantes, como instrumento ideal de soluções irrealistas.
Pode mudar-se este estado de coisas? Pode-se denunciar a cumplicidade das ciências sociais com o estado e o seu alheamento da construção de futuros diferentes dos que se nos apresentam hoje em dia?
Paulo Freire ensinou que a escola e o saber podem ser instrumentos de emancipação, se ajudarem os estudantes e os professores/as a descobrirem e denunciarem a opressão de que são alvo. Feito esse trabalho, é da responsabilidade de cada um/a fazer o que for preciso para não permitir continuar a ser oprimido/a. Nessa esperança, a escola para lá das ciências sociais quer constituir-se em centro de documentação de histórias de descoberta de formas de opressão. Inspirou-se no trabalho de denúncia dos crimes de estado cometidos nas prisões e, por isso, está consciente da cumplicidade do estado no encobrimento de tais crimes, à custa de vidas de pessoas como as outras.
Dar prioridade ao serviço do estado/economia e às justificações por eles criadas, alegando a sua modernidade e racionalidade inatas, em vez de apoiar a vida das pessoas abandonadas pela sociedade e pelo estado/economia, para que possam viver os seus direitos, é uma opção que deve ser profundamente criticada. Mas não tem sido.
A escola para lá das ciências sociais não tem aulas, nem cadeiras, nem professores/as. É uma forma de criar redes de mútuo conhecimento de pessoas e situações em que a denúncia da opressão actual, independentemente das convicções religiosas e partidárias de cada um/a, é aprofundada, posta em comum e registada no centro de documentação [2]. A finalidade é romper com os compromissos de poder das actuais ciências sociais e abrir espaço e tempo para considerar as lutas pela sobrevivência das populações excluídas e oprimidas e, também, as lutas para romper o patrulhamento cognitivo e intelectual das actuais universidades contra todos os instrumentos teóricos de emancipação e de consciencialização da opressão.
Antecipando aquilo que eventualmente será resultado desse trabalho, há que denunciar o modo como a natureza se tornou num modo de designar aquilo que pode ser legitimamente explorado, incluindo a humanidade tomada como recursos humanos. A organização da escola, em rede de nós sem relação orgânica entre si, far-se-á em torno de um centro de documentação cujos autores/as podem ser anonimizados/as, as acções de formação financiadas de acordo com as opressivas regras vigentes, mas vividas de um modo adequado às finalidades em vista. Será um desenho inovador que os/as promotores/as são convidados/as a criar, inventar e partilhar.
Os tempos estão a mudar. É tempo de reconhecer que as Ciências Sociais não têm contribuído para o fim das guerras, da fome, dos problemas ambientais, para afastar as sociedades das tentações autoritárias. Por isso, a Escola para Além das Ciências Sociais propõe dedicar-se à aprendizagem, em vez de ao ensino a que as ciências sociais estão votadas nas universidades.
Sem nos querermos substituir ao grande pensamento, que ocupa mais espaço e tempo, queremos promover uma inversão do sentido da aprendizagem de ciências sociais. Queremos valorizar as experiências de transformação pessoal e social dos estudantes, professores, técnicos sociais, ou simplesmente cidadãos. Queremos valorizar aqueles que partem da sua experiência profundamente meditada, e da sua partilha, para intervir e compreender o mundo. Mundo sem fronteiras ou tabus, onde a misoginia, o elitismo, o racismo, a violação da natureza, não vejam dissimulada e desculpada a sua estúpida alarvidade.
É tempo de abandonar a tutela dos poderes instituídos que se confessam incapazes de conduzir a humanidade e o conhecimento a bom porto. Incluindo as universidades, cúmplices da degradação da situação do mundo, por atos e omissões. Para tomar o nosso destino nas mãos precisamos de quem queira partilhar as aprendizagens e criticar os ensinamentos.
Para criar uma escola destas, do nosso tempo, há que começar por criar um centro de documentação multimédia. Para além de reconhecer o valor das bibliotecas tradicionais, queremos disponibilizar materiais que até há pouco tempo eram difíceis de produzir, divulgar e organizar, como fotos, pequenos filmes, pequenas gravações sonoras, pequenos textos que expressem a sociedade e a cultura em movimento, representando-as de forma sintética, como testemunho, confissão, partilha, revolta sobre alguma questão emergente por algum sistema de opressão e que discuta o efeito, a mecânica, ou quiçá, o tratamento para essa injustiça.
Referências:
[1] Kuhn, M. (2016). How the Social Sciences Think about the World´s Social – Outline of a Critique. Stuttgard: Ibidem.
[2] Chamada de contribuições para o Centro de Documentação da Escola para Além das Ciências Sociais escolapacs@gmail.com
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