Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia
Título do artigo: A educação intercultural: «o choque de alteridade» e «o sentido da diferença» (I)
Autor: Albino D. Cunha
Filiação institucional: Docente no Instituto Superior de Ciências Socais e Políticas/ Universidade Técnica de Lisboa e Investigador no Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais/Universidade Aberta
E-mail: acunha@iscsp.utl.pt
Palavras-chave: Educação Intercultural, Escola, Cultura, Alteridade, Diferença.
A educação intercultural é a educação no mundo actual. É uma educação relevante da educação do século XXI. Significa, antes de tudo, aprender, viver e comunicar com os outros num mundo que é de todos. Todos têm uma palavra a dizer [1][2]. As recentes notícias relativas ao grupo “Estado Islâmico são o ponto de partida para uma breve reflexão sobre a interculturalidade como paradigma do aprender a interpretar e a compreender as nossas sociedades diversas e complexas, isto é, «comme paradigme pour penser le divers» [3].
O paradigma intercultural analisa não a partir das culturas e das identidades consideradas como entidades independentes mas como processos e dinâmicas segundo uma lógica da complexidade e da variação. Isso significa que os dados interculturais são dados construídos e não correspondem a características de indivíduos ou de grupos. Resultam de um modo de interrogação e de um olhar, no sentido científico do termo [3]. Todo o discurso sobre a cultura não é mais do que a expressão de um ponto de vista suscetível de ser confirmado ou infirmado por outras versões e não é o reflexo de uma realidade objetiva mas o resultado de uma atividade social, política e da linguagem. Aliás, a cultura é um espaço de posicionamento de si e dos «outros».
Mas as culturas, marcadas pela história, pela geografia, pela política, pela economia, pela antropologia, pela sociologia, pela psicologia, etc., condicionadas pela relação com «os outros» e inscritas num contexto, num tempo e num espaço, têm tido a tendência de olhar demasiado para si. Como analisa Abdallah-Pretceille [4], apoiando-se em Pierre Bourdieu, quando este afirmava que não há autonomia da língua relativamente às condições de produção, também não há cultura (aliás, como a religião) sem que se considere as condições de comunicação e de enunciação [4]. Por isso, duas lógicas caracterizam as culturas: uma lógica relacional e uma lógica de pertença.
Estamos, assim, perante uma complexidade de interpretações múltiplas para a qual, no nosso ver, a perspetiva educativa intercultural apresenta-se como pertinente, sobretudo, quando se pretende promover uma preparação pedagógica para um universo cultural (e religioso) diversificado.
Para consubstanciar esta perspetiva, apresentamos a pertinência de uma experiência pedagógica, desenvolvida pelo Pontificio Istituto di Studi Arabi e d’Islamistica [5], que tem a particularidade de formar os estudantes num e para um universo cultural e religioso misto, diversificado, preparando-os, de forma real e eficaz, para a difusão dos valores do diálogo, da paz e do entendimento entre os diferentes povos [6].
Apresentaremos, neste artigo, os dois primeiros dos quatro pilares («O choque de alteridade», «O sentido da diferença», «A consciência do ponto de vista» e «A inteligência da coerência») desta experiência pedagógica para melhor compreender o seu contributo teórico-prático para a promoção de uma perspetiva educativa intercultural no contexto da escola, com um particular olhar no ensino secundário, como fase decisiva para o percurso pessoal, intelectual e espiritual dos jovens [7]:
- «O choque de alteridade.»: Face à construção de uma sociedade culturalmente diversificada particularmente num contexto de globalização, uma das primeiras escolhas pedagógicas utilizadas é o – choque de alteridade –. No caso concreto desta experiência pedagógica orientada para os estudos árabes e islâmicos, este choque traduz-se num estudo aprofundado da língua árabe, como instrumento indispensável para aceder aos textos fundamentais do Islão e conhecer, deste modo, os textos arabo-muçulmanos tal como são, ou, pelo menos, tal, como se afirmam nas suas fontes autorizadas [6]. Salienta-se, nesta atitude pedagógica, a necessidade de se inserir ou de conhecer o universo que não é o seu [8]. Uma dessas necessidades passaria pela valorização do ensino e aprendizagem da língua árabe. Uma valorização que centraremos na área mediterrânica, em particular nos países da Europa do Sul, com base num trabalho de investigação que realizámos naquela área geocultural, mais concretamente, no Mediterrâneo Ocidental [9]. Uma valorização que jovens da Europa e do Magrebe identificaram e valorizaram embora com variações entre esses jovens [9]. Se, no início, existe um certo receio perante o desconhecido evidenciando-se juízos de valor assentes no seu próprio sistema de referência, paulatinamente, o objetivo é abandonar esse receio, essa resistência através da descoberta da alteridade cultural [10].
- «O sentido da diferença»: Uma segunda escolha pedagógica procura convidar o jovem a promover – o sentido da diferença –, no – choque da alteridade –, com o intuito de o incentivar a melhor compreender aquilo que forja a sua própria identidade cultural e religiosa descobrindo o funcionamento de um sistema que não é o seu: o sistema cultural, religioso e linguístico. Ao aguçar – o sentido da diferença –, pretende-se evidenciar que a relação entre as culturas e as religiões não se constrói, em primeiro lugar, com base nas semelhanças, muitas vezes superficiais, mas sim sobre as diferenças bem mais importantes a descobrir e a respeitar a partir das quais se podem estabelecer pontos comuns. No caso concreto das relações entre o Islão e o Cristianismo, os estudantes apercebem-se que o Cristianismo é essencialmente uma soteriologia [11] enquanto o Islão se apresenta, antes de mais, como uma iniciação ao conhecimento do real [6].
Referências bibliográficas e webgráficas:
[1] UNESCO. (2002). Déclaration universelle de l’UNESCO sur la diversité culturelle, Paris: UNESCO.
[2] Delors, J. (Coord.) (1996). Educação, um tesouro a descobrir: Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, Porto: Edições ASA.
[3] Abdallah-Pretceille, M. (2006). “L’interculturel comme paradigme pour penser le divers” in R. Bizarro (Org). (2006). Como abordar… A escola e a diversidade cultural. Multiculturalismo, interculturalismo e educação. Porto: Areal Editores, pp. 77-87.
[4] Abdallah-Pretceille, M. (2003). Former et éduquer en contexte hétérogène. Pour un humanisme du divers, Paris: Economica/Anthropos.
[5] Um centro de estudos e de investigação sedeado em Roma cujas atividades didáticas preparam para o encontro com os muçulmanos, no respeito e em função de uma mútua compreensão. Para mais informações, cf. o sítio Internet oficial do PISAI: http://www.pisai.it – Acesso em 17 de abril de 2010.
[6] Guixot, M. A. A. (2008). «Une éducation à la mixité culturelle dans une société planétaire» in AZZOUZI, A. (Dir.). Figures et valeurs du dialogue des civilisations et des cultures, volume 3, Paris: L’Harmattan, pp. 41-45.
[7] Bureau International d’Éducation. (2004). Une Éducation de qualité pour tous les jeunes. Réflexions et contributions issues de la 47e session de la conférence internationale de l’éducation de l’UNESCO, Paris: UNESCO.
[8] Morin, E. (1999). «Penser la Méditerranée et méditerranéiser la pensée» in Méditerranée, l’inévitable dialogue, Confluences Méditerranée – Nº 28 Hiver 1998-1999, pp. 33-47.
[9] Cunha, A. (2014). Jovens da Europa e do Magrebe. Repensar as Relações Interculturais, Lisboa: NovaVega.
[10] Moatassime, A. (2008). Le Maghreb face aux enjeux culturels euro-méditerranéens. Langage et Education á l’épreuve d’une nouvelle donne, Casablanca: Editons Wallada.
[11] «Doutrina da salvação em nome de Cristo», retirado de Machado, J. P. (Coord.). (1997). Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Volume VI, SEGR-ZZZ, Lisboa: Círculo de Leitores, p. 144.
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