Dimensão analítica: Economia e Política
Título do artigo: Do Estado-Providência à caridade. A regressão do social e a reabilitação do religioso na ideologia neoliberal
Autor: Nuno Oliveira
Filiação institucional: Investigador do Max Planck Institute for the Study of Religious and Ethnic Diversity e do CIES ISCTE-IUL
E-mail: filicastrol@gmail.com
Palavras-chave: Estado-Providência, Caridade, Religião.
No clássico de Andersen, a distinção entre regimes de Estado-Providência capitalista faz com que Portugal recaia na categoria de corporativista-estatal. As estruturas herdadas do passado, o peso do Estado, e a presença da Igreja compõem esta configuração típica do sul da Europa. Uma qualificação deve, quanto mim ser feita quanto a esta tipologia: dos diversos factores que lhe estão subjacentes apenas o peso da Igreja se mantém; e não apenas se mantém como parece ser o alvo da deslocação das intenções políticas actuais. É neste sentido que aquilo que Andersen identificava como uma proverbial resistência à mercadorização de sectores do Estado e, paralelamente, uma imediata disposição para substituir o mercado por parte do Estado, tem vindo a desaparecer. Com efeito, o predomínio da linguagem e da prática do privatismo, as pressões para a privatização dos sectores económicos vitais da economia nacional, bem assim como uma redistribuição por cima, fazem com que o corporativismo assim entendido como modelo tipificador se desloque gradualmente para um modelo assumidamente liberal. Destas transformações da estrutura do Estado-Providência português apenas uma remanesce que resiste à total mutação para um sistema liberal: a centralidade da Igreja. Esta permanência é significativa do facto de o neoliberalismo conservador carrear para a sua agenda política não apenas os aspectos práticos com equilíbrios e saneamento das contas do Estado – como a sua retórica insiste – mas também uma agenda moral de contornos pouco definidos. Indefinidos porque em larga medida contraditórios. Essa contradição encontra o seu paroxismo no aparente desajustamento entre o que surge como disposição para processos e elementos desestruturantes nas mais diversas esferas sociais, mantendo no entanto a pretensão a um núcleo moral sólido com reverberações no comportamento individual. Essa pretensão possui dois vectores fundamentais: a família e a caridade. A primeira é estruturante de toda a visão da Igreja, podemos dizer que é axial na sua doutrina. A segunda consubstancia-se num movimento de substituição do Estado pela sociedade, onde contrariamente à leitura da esquerda de uma sociedade interventiva no e para o comum, se constrói uma visão individualizada da prestação social correspondente ao estatuto moral de cada um. Ser chamado a contribuir possui obviamente uma ressonância religiosa. Por isso, este recentramento da providência na sociedade e o seu afastamento da estrutura distributiva do Estado efectua uma translação da abstracção da cidadania universal como comunidade nacional para a comunidade dos crentes. Este recentramento na comunidade não deve ser confundido com a noção de sociedade providência popularizada por Boaventura de Sousa Santos. Com efeito, onde este encontra redes sociais que substituem a fraca penetração do Estado assim mitigando o potencial de exclusão social, a deslocação coeva é de outra natureza.
Existem razões pragmáticas para esta deslocação. Se constatarmos que parte dos assim autodesignados moralizadores da pobreza pertencentes ao actual governo são provenientes, ou possuem estreitas ligações, com as organizações católicas, percebemos que por trás desta cruzada moral existe uma bem definida deslocação de recursos para a estrutura da Igreja. Mas estaríamos enganados se percepcionássemos um tal trade-off como uma simples instrumentalização dos recursos do Estado. Por outro lado, a relação estruturante entre Estados-providência do sul da Europa e catolicismo foi também estabelecida empiricamente (Castles, 1994), sendo que uma das questões relevantes era a relação entre o segundo e os resultados das políticas públicas. Todavia, o que se trata aqui nesta viragem neoliberal é, pensamos, de uma mutação fundamental na lógica da integração social (em última análise, nacional).
A visão de que deve ser a comunidade a auto-organizar-se substituindo um Estado que tudo esmaga é convenientemente interpretada como necessidade de saneamento das contas públicas. Contudo, o que lhe está subjacente é uma particular visão da pobreza. Esta visão é sobejamente individualizadora e vem no seguimento de outras tendências similares detectadas na maioria dos Estados-providência capitalistas (Hentzinger, para a Holanda e para a generalidade dos estados europeus; Beck e Beck-Gernsheim para a Alemanha). A individualização parece ser uma recorrência, coadjuvada com a sua consequência lógica, flexibilização. Mas a individualização, sendo um princípio de privatização da esfera prática (também ontológica) da pessoa, interpreta a pobreza como um deficit dessa mesma individualização. Se por hipótese individualização é coincidente com autonomia – como a leitura neoliberal assevera – então a perda de autonomia decorrente da queda em situações de deficit social, gera um individuo incompleto. Há portanto nesta ideologia mais do que uma preocupação com os equilíbrios sociais – ela desenvolve-se através de uma antropologia filosófica implícita. Ou seja, a completude do indivíduo deve ser resgatada mediante um religar do laço social de natureza religiosa. A caridade constitui-se então como um resgate social e espiritual do indivíduo no espaço da despolitização. Para quem a faz, há um acréscimo simbólico com impactos no seu estatuto; para quem dela é objecto, o precioso resgate tem uma face e esta relação é inscrita numa transacção entre a moral, o poder e o respeito – ou seja, numa ligação carismática.
Contrariamente aos mecanismos típicos do Estado-providência que abstraem a distribuição de ligações concretas individualizadas recuperando-a para o espaço das localizações sociais, mormente de natureza classista, a caridade, ou a distribuição por interesses instalados, opera de maneira individualizante e estatutária. Com isto quero dizer que os ganhos da distribuição são vistos como oferendas no sentido religioso do termo, ou seja, algo atribuível numa relação de reciprocidade em que o ofertado fica com uma dívida para com o ofertante. Parte dessa dívida é imediatamente saldada em capital simbólico no momento da dádiva. Mas esta valoração só tem ressonância no interior do contexto que considera a dádiva como altruísta mascarando de generosidade a sua instrumentalidade. Todavia, como a reciprocidade é impossível pela distância social entre o ofertante e o ofertado, não se estabelece na realidade uma estrutura do tipo da dádiva colectiva como concebida por Mauss. Pelo contrário, a dívida é irrecorrível e de carácter individualizante. Pela caridade, não é um grupo que passa a ser identificado segundo uma ordem de carências, mas sim indivíduos que se encontram numa situação particular que os coloca fora da organização social da distribuição, doravante feita através do mercado. Esta individualização da carência possui a sua recíproca, i.e., a individualização da responsabilidade. Na ordem religiosa da caridade, o indivíduo dela alvo não apenas é responsável pela sua “queda”, como também pela retribuição da dívida que evidentemente é insanável. Mas por que razão precisa o mercado actual, um mecanismo sem rosto cuja dimensão de arbitrariedade resulta tanto da desorganização do exercício do poder como da imprevisibilidade das jogadas dos seus actores, de uma reinstituição do colectivo religioso? Já vimos o mesmo fenómeno desenvolver-se, como intensidade assinalável, nos Estados Unidos: os mais radicais neoliberais são por norma os maiores defensores da presença da(s) igreja(s) no sector social. Em certa medida, porque precisa de se absolver moralmente. Na medida em que se criou a doutrina de que consequências anteriormente imputadas à injustiça do mercado não são mais do que externalidades do seu funcionamento óptimo, os correctivos não podem nunca ser aplicados a este mesmo funcionamento. Se a exclusão e a pobreza, por exemplo, forem reabsorvidas pela esfera moral e religiosa, não apenas a sua estrutura fundamentalmente individualizante (e logo homóloga ao mercado) se mantém intacta, como um sucedâneo da communitas pode ser encontrada sem colocar em risco a ordem social da privatização individualizadora. Este espaço é então despolitizado porque deixa intacta a injustiça fundamental que é alguns terem muitíssimo e outros nada terem. Aquilo que deveria ser declinado na linguagem da justiça social passa então a ser compreendido por uma economia simbólica da culpa.
Bibliografia
Beck, Ulrich, and Elisabeth Beck-Gernsheim (2002). Individualization: Institutionalized Individualism and its Social and Political Consequences. Londres, UK: Sage.
Castles, F.G. (1994). On Religion and Public Policy: Does Catholicism Make a Difference?, European Journal of Political Research, 25 (1), 19-40.
Esping-Andersen, G. (1990). The Three Worlds of Welfare Capitalism. Cambridge: Polity Press.
Hemerijck, A. (2013). Changing Welfare States. Oxford: Oxford University Press.
Santos, B. S. (1990). O Estado e a Sociedade em Portugal (1934-1989) Porto: Ed. Afrontamento.
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