Os homicídios nas relações conjugais: perspetivas sociojurídicas

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Os homicídios nas relações conjugais: perspetivas sociojurídicas

Autora: Madalena Duarte

Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

E-mail: madalena@ces.uc.pt

Palavras-chave: homicídios conjugais, violência doméstica, género.

A violência nas relações de intimidade, legalmente designada como violência doméstica, permanece na atualidade como uma relevante fonte de exclusão social. Contudo, este tipo específico de violência tem sido objeto de diversas políticas, em particular dirigidas à sua criminalização. Se até há uns anos, a maioria dos países tendia a negligenciar a existência deste problema, hoje podemos afirmar que o tratamento legal da violência doméstica é uma prioridade, facilitando a intervenção do Estado e outros organismos nestas situações. Portugal não é exceção, tendo feito um esforço significativo nesta matéria (empenho relativamente recente, localizado a partir do 25 de Abril de 1974 – mais especificamente com a Constituição de 1976 –, muito devido às movimentações populares que traziam consigo fortes reivindicações em torno da consagração de direitos). No longo caminho legislativo destacam-se, a meu ver, quatro marcos: a consagração do crime de maus-tratos a cônjuge na ordem jurídica portuguesa em 1982; a atribuição de natureza pública a este crime em 2000; a autonomização do tipo legal de crime intitulado violência doméstica na revisão do Código Penal em 2007; e, em 2009, a Lei 112/2009, de 16 de setembro, que aprovou o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas.

Hoje, apesar de se estimar que este crime esteja ainda envolto numa grande opacidade, certo é que a visibilidade tem sido crescente. O elevado volume de participações registadas pelas Forças de Segurança indica que este é o quarto crime mais registado, tendo as denúncias aumentado 2,4% em 2013 [1]. As mesmas estatísticas evidenciam que 85% das vítimas são do sexo feminino, denotando a natureza genderizada desta violência.

Contudo, há três dados que, por emergirem praticamente no mesmo período temporal, merecem a nossa atenção. Em primeiro lugar, apesar das mudanças legislativas nesta matéria (que adensam as penalizações e oferecem mais medidas de proteção às vítimas após apresentarem denúncia), verificamos um aumento dos homicídios no âmbito das relações de intimidade, habitualmente designados como “homicídios conjugais”. Tendo como referência a última década, entre 2006 e 2011, foram mortas cerca de 250 mulheres em relações íntimas [2]; 2014 foi um dos anos que registou um maior número de mortes de mulheres no seio de relações de intimidade, valor apenas superado em 2008, quando o número de mortes atingiu as 46 mulheres [3]. Em 2013 foram 40 os homicídios conjugais, correspondendo a 1/3 dos homicídios registados anualmente [2].

Em segundo lugar, constata-se um decréscimo, desde 2009, das condenações nos homicídios que ocorrem em relações de intimidade (por contraponto a uma relativa estabilização ou até ligeiro aumento nas condenações pelos restantes homicídios).

Por fim, desde 2007 é possível constatar o aumento da proporção de casos em que a pessoa condenada é do sexo feminino e a correspondente redução da proporção em que a pessoa condenada é do sexo masculino (passando de 4,4% em 2007 para 16,7% em 2013) [4].

Num tal cenário, é necessário analisar a resposta legal – jurídica e judicial – ao flagelo abissal dos homicídios, a forma mais extremada da violência que ocorre no âmbito de relações de intimidade. Esta análise deve ser feita, não apenas a um nível técnico-legal, mas sociojurídico que permita contextualizar quer o fenómeno da violência doméstica, quer da aplicação da lei num quadro mais amplo de desigualdades de género.

Em 2013 [5] problematizei e defendi que uma resposta legal mais eficaz passa, por um lado, pela efetiva aplicação da lei e, por outro, por um forte investimento na formação das magistraturas, judicial e do Ministério Público. Quanto às primeiras medidas é possível evidenciar, entre muitas outras, no que aos Homicídios Conjugais diz respeito, a necessidade de uma avaliação do risco exemplar por parte das forças de segurança; a aplicação da medida de coação mais adequada tendo em conta essa avaliação; e uma efetiva vigilância do cumprimento da mesma. A expectativa mais frequente da vítima quando apresenta uma denúncia é encontrar um patamar de segurança. Essa expectativa maior da vítima deve ser a maior responsabilidade do Direito, já que uma medida de coação ineficaz pode colocar em causa a vida da mulher e dos seus familiares.

O segundo conjunto de medidas constitui um considerável desafio para o Direito e seus atores. Supõe que os tribunais ousem tratar esta questão como um conflito estrutural, ou seja, relacionem litígios particulares com as fraturas estruturais que os precedem, neste caso a violência e a desigualdade de género. Tendo em conta as margens de discricionariedade que os/as magistrados/as detêm, é fundamental conhecer as suas culturas legais [6], em particular avaliar como as crenças/valores, tradições, ideias, emoções os/as influenciam no seu trabalho. No fundo, importa que se entendam não apenas os comportamentos e ideias legalmente orientadas, mas também aqueles aspetos mais nebulosos que influenciam, consciente ou inconscientemente, as práticas das magistraturas, nomeadamente a forte presença de estereótipos e mitos associados a vítimas, agressores e às causas da violência doméstica. Vários acórdãos sobre homicídio conjugal dão conta disso mesmo ao proceder a uma tipificação daquilo que é uma mulher e um homem “razoável”, e portanto uma “boa” ou “má” vítima, e ao usar as emoções (e.g. paixão, descontrolo, ciúme), curiosamente tidas como características femininas, de modo a favorecer o homem e a não beneficiar a mulher. Se a paixão fragiliza o homem no seu discernimento, e serve não raras vezes como atenuante, a mesma paixão, quando invocada, obriga a mulher à manutenção da relação e não justifica o seu descontrolo [5].

A vigilância destes aspetos, notoriamente enraizados nas perceções de todos/as sobre a violência doméstica, é fundamental. A sorte das mulheres não pode depender do senso comum de cada ator legal, não tendo nós certeza de que este senso comum é bom senso (aqui entendido como consciência social da gravidade deste crime). O bom senso olha para a violência doméstica como uma violência de género, inserida num quadro de desigualdade de poder numa sociedade patriarcal, percebe as complexidades do crime e questiona a genderização da ideia de razoabilidade tão cara ao direito penal.

Notas:

  1. Este artigo baseia-se na investigação de pós doutoramento da autora realizada no âmbito de uma bolsa concedida pela FCT.

[1] DGAI (2014), Relatório Anual de Monitorização de Violência Doméstica – 2012 e 2013. Disponível em URL [Consult. fev. 2015]: <http://www.dgai.mai.gov.pt/files/conteudos/Rel%20VD%202013_%20v14ago2014.pdf>.

[2] Relatório Nacional de Segurança Interna. Disponível em URL [Consult. fev. 2015]: <http://www.portugal.gov.pt/pt/documentos-oficiais/20140401-rasi-2013.aspx>.

[3] Observatório das Mulheres Assassinadas – OMA. Disponível em URL [Consult. fev. 2015]:<http://www.umarfeminismos.org/?option=com_content&view=article&id=272&Itemid=26>.

[4] DGPJ (2013), Os Números da Justiça 2012 – Principais indicadores das estatísticas da Justiça. Disponível em URL [Consult. fev. 2015]: <http://www.siej.dgpj.mj.pt/webeis/index.jsp?username=Publico&pgmWindowName=pgmWindow_6355428%2092761221250>.

[5] Duarte, Madalena (2013), Para um Direito sem Margens: representações sobre o direito e a violência contra as mulheres. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

[6] Nelken, David (2004), “Using the Concept of Legal Culture”, Australian Journal of Legal Philosophy, 29, p. 128.

 .

.

Esta entrada foi publicada em Economia, Trabalho e Governação Pública com as tags , , . ligação permanente.