Dimensão analítica: Economia e Política
Título do artigo: Os impasses do “europeísmo” face à crise económica: um regresso à democracia?
Autor: João Carlos Graça
Filiação institucional: SOCIUS/ISEG, Universidade de Lisboa
E-mail: jgraca@iseg.ulisboa.pt
Palavras-chave: democracia, europeísmo, crise.
A pertença à Eurolândia tem sido e deve continuar a ser catastrófica para a economia portuguesa. As razões foram expostas de forma pertinente por diversos autores. A perceção deste facto constitui, porém, todo um outro assunto. Em Portugal existe um imenso consenso político e cultural pró-Euro, abarcando quer o “arco da governação” quer a “esquerda europeísta”, a qual insiste na ideia de que “uma outra Europa seria possível”, assumindo-se pois como “leal oposição” no âmbito do europeísmo realmente existente. De facto, porém, o Euro é não apenas brutalmente lesivo da economia portuguesa, como ainda constitucionalmente antidemocrático, estando assente no projeto public choice de construir uma “governação” europeia ao abrigo do “ciclo eleitoral”, livre-de-eleições, tornando fundamentalmente inanes os atos eleitorais, quer ao nível de cada país quer da própria UE, com o seu pateticamente decorativo “Parlamento Europeu”. A desemancipação política resultante da pertença ao Euro, em si mesma um tremendo crime de lesa-Democracia e lesa-Pátria, tenderia entretanto a passar despercebida se não fosse a crise económica pós-2008, a qual fez expor vivamente, para além da miserável condição económica dos PIIGS, também a sua/nossa miserável condição política: meras aparências fantasmáticas de democracias, destinadas a “povos menores”.
Iniciando esta digressão com típicas interrogações “sociológicas” e com base em dados do Eurostat, constata-se antes de mais que a ideia de o Euro ser “uma má escolha” tem progredido na opinião portuguesa, mas muito lentamente. Quanto à importância simbólica da integração na UEM para a nossa perceção coletiva enquanto “europeus”, quase não há alterações ao longo do período considerado (2002-13). Acontece o mesmo a respeito de dificuldades na utilização de moedas e/ou notas de Euro. Existe entretanto um elevado número de inquiridos que continua a “traduzir” mentalmente em escudos nas transações, embora o peso relativo dos que assumem não “traduzir” venha aumentando de forma continuada. Numa construção muito enviesada das questões, os inquiridos foram indagados sobre a adequação do “grau de coordenação das políticas económicas” na Eurolândia, a esmagadora maioria opinando pela conveniência de maior coordenação, o que tem um significado obviamente ambíguo. Todavia, não são ambíguas as respostas quanto à alegada vantagem de transferir do nível nacional para o “europeu” a elaboração das “reformas económicas”, sendo assustador verificar que 77 por cento concordam ou tendem a concordar.
Relativamente à análise da factualidade económica, destaque-se que desde a década de 1990, quando os câmbios das diversas moedas nacionais foram tornados fixos, rapidamente emergiu a tendência para o acumular de défices na balança corrente dos países periféricos, a qual foi o reverso das balanças excedentárias do centro. O corolário desta situação foi o acumular dum enorme endividamento externo em países como Portugal. Os agentes económicos consomem “acima das suas possibilidades”, ou seja, face à falta de competitividade dos produtos portugueses e à atratividade dos estrangeiros, há tendência para consumir com recurso a crédito, o que leva os bancos a endividar-se no estrangeiro. Não são apenas os poderes públicos a endividar-se no estrangeiro. Pode dizer-se que demasiadas pessoas compraram casa com recurso ao crédito na década anterior a 2008, porque o juro ficou reduzido. Este desequilíbrio poderia ser combatido via desvalorização cambial e subida das taxas de juro. Não o sendo, e continuando a não ser, a alternativa é a submissão à “desvalorização interna”, explicitamente em curso desde 2011.
Entretanto, porém, o problema fundamental da economia portuguesa, em vez de identificado como tendência para o défice externo, é sistematicamente diagnosticado de forma impostora como residindo num défice orçamental supostamente excessivo. Todavia, e mesmo face à ortodoxia maastrichtiana, aquele défice foi neste período (2001-12) em média apenas ligeiramente superior ao “tabu” dos 3 por cento do PIB, genericamente em linha com os outros PIIGS e sem os extremos de “indisciplina” de vários deles. Quanto à dívida pública, é de destacar que só na sequência da “crise das dívidas soberanas” e do subsequente resgate dos bancos se tornou, em percentagem do PIB, superior à média europeia. Pode dizer-se que até 2008 Portugal não tinha qualquer problema de dívida pública excessiva: foram precisamente os anos da facinorosa fúria austeritária, não os da alegada orgia despesista, que produziram a dramática situação atual.
Muito preocupante é, isso sim, a evolução do investimento material, condicionando os níveis de produtividade no futuro: a FBCF tem registado um declínio assustador, que o é ainda mais considerando que aquele indicador também tem sido negativo na Europa, mas entre nós, e precisamente desde o Euro, evoluiu a um ritmo abaixo do europeu. Quanto à distribuição do rendimento, se Portugal era um país mais desigual do que a média europeia, o respetivo diferencial da média europeia estava todavia a sofrer uma lenta redução até 2010, mas desde o desencadear das fúrias “austeritárias” pós-memorando até essa pequena boa notícia foi aniquilada. Em paralelo os níveis oficiais de desemprego, tradicionalmente baixos, têm crescido de forma vertiginosa, sendo desde 2009 superiores à média europeia, e no contexto dum “estado social” muitíssimo frágil.
Destaque-se igualmente a tendência das exportações e das importações para convergirem em ritmo evolutivo, nomeadamente para as importações encolherem, o que atenuou o défice das contas exteriores. Todavia, em vez de isso ocorrer via estímulo às exportações, como seria com uma desvalorização cambial, acontece via empobrecimento e descida das importações, o que também reduz o défice, sim, mas de forma muitíssimo miserável. Isto é confirmado pelo decréscimo dos preços: em vez de inflação, entrámos em deflação, o que reforça o afundamento económico geral. Simultaneamente, a produção industrial entrou também “no negativo”, aliás em paralelo com a FBCF. Igualmente o consumo privado e os gastos públicos registaram importantes decréscimos, o que contribui para o colapso económico geral via redução da procura agregada.
Quanto ao PIB, desde 1970 até ao Euro genericamente Portugal cresce mais depressa do que a média europeia (embora também sujeito a oscilações maiores), pelo que convergimos com o “pelotão da frente”. Desde então, e por vincado contraste, atrasamo-nos de forma sistemática e cada vez mais desastrosa. Portugal aparece, quanto a isto, colado sobretudo à Itália, dado que a Grécia converge nos primeiros anos do Euro com a média europeia, para depois, desde 2008, sofrer um “ajustamento” mais brutal que o nosso. Na verdade, partindo de valores-base 100, para o ano de 2000, verifica-se que três países viram já destruído o crescimento acumulado na primeira parte do período: Grécia, Portugal e a Itália. A Grécia, todavia, portou-se primeiro bem, mas depois sofreu uma catástrofe de dimensões épicas. Portugal e a Itália, pelo seu lado, arrastam-se já desde o começo do século numa apagada e vil tristeza. Entretanto, quer a ciclotímica/bipolar Grécia quer os deprimidos/infelizes Portugal e Itália são, sem qualquer dúvida, países lesadíssimos pela pertença à Eurolândia. Os demais PIIGS têm resistido melhor, convergindo com a média europeia no conjunto do período desde 2000.
Todavia, factos económicos são uma coisa, perceções são outra. O pavor neurótico da opinião pública portuguesa quanto à saída da UEM só é talvez comparável à ideia, propalada nos últimos anos do Estado Novo, segundo a qual o país “não poderia sobreviver sem as colónias”…
(Este artigo é uma versão reduzida da comunicação apresentada no VIII Congresso Português de Sociologia, Évora, Abril de 2014, e publicada em http://resistir.info/europa/impasse_europeismo.html. Para consulta de quadros e bibliografia, ver o site.)
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