Inseguranças urbanas e vitimações coletivas

Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime

Título do artigo: Inseguranças urbanas e vitimações coletivas

Autora: Helena Grangeia e Olga Furriel Cruz

Filiação institucional: Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento (Instituto Superior da Maia) e Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos (Universidade do Minho)

E-mail: hgrangeia@ismai.pt; ocruz@ismai.pt

Palavras-chave: Inseguranças urbanas, Vitimações coletivas, Contextos urbanos.

A análise do crime e da violência implica atender aos contextos a partir dos quais as subjetividades e as práticas se produzem. Tratar tais conceitos num ‘vácuo social’ limita a sua compreensão e impossibilita aceder aos modos como são construídos os significados e definidas as experiências de perpetração e vitimação. Neste sentido, propõe-se tratar especificamente o fenómeno criminal considerando as significações emergentes no tecido urbano, incluindo a sua construção como forma de violência e de vitimação. Reconhece-se, inclusive, que o sentimento de insegurança pode ser ainda mais nefasto do que o próprio ato criminal, na medida em que permeia os níveis de confiança e afeta o bem-estar das pessoas e das sociedades, vulnerabilizando-as e tornando-as mais facilmente manipuláveis. Este é o mote para a problematização do conceito de vitimação coletiva relacionando-o com um importante custo da vitimação: o sentimento de insegurança.

Tradicionalmente os conceitos de vitimação e de vítima são amplamente trabalhados. Sabe-se que a autoperceção enquanto vítima – quer individual, quer enquanto membro de um grupo – pode ser despoletada por inúmeras situações e passa a integrar o reportório pessoal do sujeito [1]. Entenda-se ainda que a experiência de vitimação não depende da ocorrência de um evento criminal, reconhecendo-se a existência de vítimas sem crime.

Quer se trate de vitimação individual ou coletiva, esta experiência gera custos substanciais. É importante considerar que os efeitos do crime estendem-se para lá do impacto direto, concreto e visível possuindo também uma dimensão psicológica, menos observável, que afeta de igual forma a vida de indivíduos não envolvidos, assim como a sociedade no seu todo. Ou seja, envolve também o desenvolvimento de determinadas características psicológicas, como a perda de confiança em terceiros, a desesperança aprendida, o locus de controlo externo e a baixa autoestima [1]. São estes custos intangíveis, associados ao sentido de ameaça de vitimação e a uma perda de qualidade de vida que, apesar de mais dificilmente mensuráveis, contabilizam a maior proporção dos custos da vitimação [2].

Um importante custo intangível é, desta forma, o sentimento de insegurança, que apesar de não ter que surgir necessariamente associado a uma experiência direta de vitimação criminal, é entendido como o legado mais persistente e vasto do crime, uma vez que dissemina socialmente os danos da vitimação. Como propõe Lourenço [3], o sentimento de insegurança surge então enquanto conjunto de “manifestações de inquietação, de perturbação ou de medo, quer individuais, quer coletivas, cristalizadas sobre o crime” (p. 7). É um sentimento que resulta da construção do crime como risco, contendo em si mesmo entendimentos complexos sobre o mundo social. O sentimento de insegurança funciona assim como uma ‘esponja’, absorvendo todo o tipo de ansiedades sobre outros assuntos relacionados com a deterioração do tecido moral e da comunidade [4]. Por esta razão, o sentimento de insegurança surge particularmente associado com locais densamente povoados e ambientes urbanos – espaços duplamente ricos em oportunidades e em riscos e fortemente polarizados socialmente. Mais, a perceção de risco individual é moldada pela presença de significadores presentes no meio social e físico, ou seja, incivilidades que simbolizam a decadência urbana e problemas sociais. Estes são interpretados como sintomas de uma ordem social frágil que coloca em causa os mecanismos de controlo social, bem como a organização, coesão e estabilidade sociais.

Deste modo, defendemos que o sentimento de insegurança estabelece e reforça a clivagem entre dois polos – o nós e os outros – promovendo uma perspetiva socialmente diferenciadora que reflete a crise do coletivo e promove a exclusão social [5]. Ou seja, a preocupação pela ordem social, tal como denominada por Lourenço [4], surge associada a questões identitárias e à classificação social, contribuindo para a estigmatização dos outros como protagonistas do crime e, por isso, da desordem social. Estes outros construídos como diferenciados do nós, marginais à sociedade, são apontados como figuras de medo e, por isso, geradores do sentimento de insegurança. Apesar de significadores da desordem social, são eles próprios, paradoxalmente, alvo dos efeitos perniciosos e excludentes do sentimento de insegurança.

Por outro lado, a noção de vitimação coletiva associada ao sentimento de insegurança pode ser também concetualizada a partir da perspetiva dos indivíduos que, por partilharem um atributo comum ou relações sociais, formam grupos associados a uma maior vulnerabilidade. Por exemplo, o sentimento de insegurança construído na comunidade LGBT e imigrante pela perceção de vulnerabilidade relativamente aos crimes de ódio; entre os funcionários/as de ourivesarias relativamente aos furtos e roubos nestes estabelecimentos; e entre os/as idosos/as enquanto franja da população construída como mais vulnerável. O desconforto subjetivo associado ao sentimento de insegurança diminui a qualidade e a satisfação com a vida dos indivíduos, uma vez que se associa ao sentimento de perda de controlo e de confiança nos mecanismos formais de manutenção da ordem social [6]. Desta forma, o sentimento de insegurança compromete a vida do indivíduo na comunidade, promovendo mais uma vez a crise do vínculo social, a exacerbação do individual e, consequentemente, a clivagem entre o nós e os outros.

Notas

[1] Bar-Tal, Daniel; Chernyak-Hai, Lily; Schori, Noa; Gundar, Ayelet (2009), A sense of selfperceived collective victimhood in intractable conflicts, International Review of the Red Cross, 91, pp. 229–258.

[2] McCollister, Kathryn E.; French, Michael T.; Fang, Hai (2010), The Cost of Crime to Society: New Crime-Specific Estimates for Policy and Program Evaluation, Drug and Alcohol Dependence, 108, pp. 98–109.

[3] Lourenço, Nelson (2010), Cidades e sentimento de insegurança: Violência urbana ou insegurança urbana?, Disponível em URL [Consult. 15 Nov 2013]: <http://www.fd.unl.pt/Anexos/3841.pdf>.

[4] Jackson, Jonathan (2006), Introducing fear of crime to risk research, Risk Analysis, 26, pp. 253–264.

[5] Fernandes, Luís; Neves, Tiago (2010), Controlo da marginalidade, violência estrutural e vitimações colectivas, In C. Machado (Coord.) – Novas formas de vitimação criminal, Braga: Psiquilíbrios, pp. 313–335.

[6] Adams, Richard E.; Serpe, Richard T. (2000), Social Integration, Fear of Crime, and Psychological Health, Sociological Perspectives, 43, pp. 605–629.

 

 

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