Dimensão analítica: Direito, Justiça e Crime
Título do artigo: A importância das vítimas e a reparação da violência doméstica
Autor: Tiago Ribeiro
Filiação institucional: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
E-mail: tmcribeiro@gmail.com
Palavras-chave: Violência doméstica, Indemnização, Justiça.
Numa anterior contribuição que tive oportunidade de desenvolver para o Barómetro Social [1], apresentei e problematizei alguns dos pontos críticos relativos à indemnização das vítimas de violência doméstica em Portugal. Neste texto, o meu objectivo será enquadrar o tema indemnizatório num processo mais amplo de enfoque da análise científica, do activismo político e do sistema de justiça nos interesses e aspirações das vítimas de violência doméstica.
Mais de uma década depois da tipificação da violência doméstica como crime público [2], o marcador normativo mais expressivo da importância deste tema na política pública de justiça reside na aprovação, em 2009, de um regime jurídico específico relativo à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas [3], que, originário de um acumulado de debates e consensos, define e enquadra o estatuto da vítima de violência doméstica em Portugal, na óptica dos poderes públicos. Não nos cabendo aqui discutir o mérito, a ambição ou o realismo dos seus conteúdos mais alargados, nem, quatro anos passados da sua entrada em vigor, avaliar o seu impacto na protecção e capacitação das vítimas, interessa sublinhar que o território epistemológico para que aponta (e não aponta) é parte das preocupações originais da vitimologia.
A centralidade conferida às vítimas nos discursos e nos modos de acção judiciária emerge de um processo de ruptura, operado nas décadas de 60 e 70 do século XX, com as abordagens criminais clássicas e com o respectivo enfoque analítico: a vítima deixa de cumprir uma mera função de auxílio à investigação dos factos e à punição do agressor, convertendo-se num sujeito titular de direitos, beneficiário de visibilidade própria e merecedor de respostas específicas. A legitimidade do sistema de justiça envolve agora não apenas a sua função repressiva do desvio, como também a sua função correctora das respectivas consequências. Todavia, a concepção da vítima, da sua condição e das diferentes dimensões que constroem a sua preponderância nas dinâmicas criminais, é alvo de um histórico, intenso e complexo debate que atravessa quer os estudos sociais da justiça, quer o activismo político em torno dos direitos das vítimas. Sofia Neves e Marisalva Fávero [4] procedem a uma reconstituição histórica do percurso dos estudos vitimológicos, procurando dar conta das suas principais orientações teóricas, programas de pesquisa, controvérsias normativas e ramificações disciplinares.
Os primeiros exercícios vitimológicos, animados por uma epistemologia positivista, visavam tipificar as vítimas em perfis de propensão (à semelhança do que habitualmente se fazia com os criminosos) e compreender até que ponto estas constituiam precipitadores activos do próprio crime que sofreram (atendendo à sua desvantagem física, às suas características psicológicas, aos seus comportamentos provocadores ou à sua condição social): “num certo sentido, a teoria deste percursor da vitimologia [Hans von Hentig] apresenta a vítima como um agente que molda o crime, interagindo com o/a criminoso/a” [4] (pág. 20). Esta linha de investigação foi trabalhada e desenvolvida por múltiplos autores, acrescentando-lhe, subtraindo-lhe ou problematizando-lhe os factores envolvidos na equação sociológica que subjaz o processo de vitimação. Neste contexto, apesar do lugar cimeiro das mulheres na hierarquia da vitimação [5] (pág. 103), adquirindo inequivocamente o estatuto social de vítima, a análise da violência doméstica padecia (e ainda padece) de um viés patriarcal que, por um lado, tolera, naturaliza e despolitiza o domínio masculino sobre a esfera íntima e, por outro, avalia o crime em função do perfil de actuação da vítima.
Segundo Neves e Fávero [4] (pág. 36), o surgimento das perspectivas socioestruturais, institucionais e culturais revolucionaram o paradigma vitimológico ao apetrechá-lo com recursos conceptuais de natureza radical, crítica e feminista. Estes permitem uma análise sistemática e politicamente informada das desigualdades estruturais e das relações de poder às quais, através de configurações variáveis, obedece tanto a construção social da relação vítima-agressor como o mapa epistémico em que funciona o sistema de justiça.
Um aspecto que, da reflexão trazida pelas autoras, me parece importante. O nascimento e o desenvolvimento das referidas perspectivas radicais, críticas e feministas encontram uma relação orgânica com o activismo político em torno da defesa das vítimas. Este activismo funciona mediante protocolos de conhecimento e regimes de acção, de alguma forma, distintos da lógica científica estrita. Todavia, não podem ser compreendidos separadamente. Apesar de a sua inter-relação ser fortemente denunciada por autoras como Ezzat Fattah [6], o activismo político é crucial para a visibilização de múltiplas dimensões da vitimação e para a sua inscrição numa narrativa de violência que o positivismo analítico seria incapaz de abarcar.
Outro aspecto, menos comum na literatura vitimológica, consiste na ideia de que foi a dinâmica política e científica das abordagens críticas e feministas que, através da atenção dirigida aos interesses e aspirações das vítimas, abriu espaço à deslocação da especificidade do tema criminal para o enfoque analítico na relação entre violência doméstica e responsabilidade civil, promovendo aquilo que ficou designado por feminist torts scholarship [7] [8]. Esta linha de pesquisa constitui, nos dias de hoje, uma referência crucial para a análise dos processos indemnizatórios das vítimas enquanto janelas privilegiadas para compreender tanto as bases ideológicas da argumentação jurídica como a economia de princípios e valores que caracterizam os consensos (e rupturas) sociais sobre o dano na violência doméstica.
Notas e referências bibliográficas
[1] Cf. http://barometro.com.pt/archives/809.
[2] A violência doméstica passou a ser crime público em 2000 (Lei n.º7/2000, de 27 de Maio), prevendo-se a criação de uma rede de casas-abrigo e de centros de atendimento às vítimas, e fortalecendo-se, por exemplo, a possibilidade legal de afastamento do agressor – medida cuja subutilização em prejuízo das vítimas, constitui, por vezes, motivo de contestação. A sua redacção actual foi fixada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que a caracteriza como a prática, não necessariamente reiterada (et pour cause), de maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.
[3] Cf. Lei n.º112/2009, de 16 de Setembro.
[4] Neves, Sofia; Fávero, Marisalva (2010), “A Vitimologia e os seus percursos históricos, teóricos e epistemológicos”, In Sofia Neves; Marisalva, Fávero (Coords.) – Vitimologia: ciência e activismo, Coimbra: Almedina, pp. 13–48.
[5] Walklate, Sandra (2010), “Vitimologia e Investigação”, In Sofia Neves; Marisalva, Fávero (Coords.) – Vitimologia: ciência e activismo, Coimbra: Almedina, pp. 87–109.
[6] Fattah, Ezzat (2010), “Da investigação ao activismo, da academia ao partidarismo e o consequente empobrecimento da Vitimologia”, In Sofia Neves; Marisalva, Fávero (Coords.) – Vitimologia: ciência e activismo, Coimbra: Almedina, pp. 49–86.
[7] Bender, Leslie (1993), “An overview of feminist torts scholarship”, 78 Cornell Law Review, 575, pp. 2–25.
[8] Wriggins, Jennifer B. (2005), “Toward A Feminist Revision of Torts”, Journal of Gender, Social Policy & the Law, Volume 13, Issue 1, Article 9, pp. 139–159.