Dimensão analítica: Educação, Ciência e Tecnologia
Título do artigo: Gavetos, gavetas e enGAVEtados: Constrangimentos e dilemas dos jovens (enquanto alunos) na escola e para além dela
Autor: José Augusto Palhares
Filiação institucional: Instituto de Educação da Universidade do Minho
E-mail: jpalhares@ie.uminho.pt
Palavras-chave: Jovens, escola, dilemas.
A educação não é só um ato intrinsecamente cultural, mas é também um processo de imersão nas dimensões expressivas da cultura e de construção de afinidades/disposições culturais múltiplas. A educação – melhor seria conjuga-la no plural – é teoricamente fugidia: sob um aparente consenso social quanto ao seu entendimento e finalidades, dificilmente conseguimos ter na ponta da língua uma resposta convincente à pergunta “de que falamos quando falamos de educação?”. Sendo uma pergunta naïve, a correlativa resposta não o será certamente, pois, desde logo, esbarra com as visões hegemónicas que a tendem a associar ao universo escolar e eventualmente à adjetivação do ser humano que se comporta com civilidade. Em nosso entender, a educação será tanto mais significativa quanto mais contextualizada for; e esta contextualização só será possível por intermédio da apropriação dos signos e dos significados culturais, que ocorre no decurso do quotidiano e tendo o sujeito como ator central neste processo.
Será difícil, então, conceber uma educação descontextualizada da cidade, dos seus espaços e tempos transacionais, das suas arquiteturas simbólicas, históricas e emocionais (e evidentemente também das estéticas e físicas), dos sentidos dos atores e das suas inscrições cívicas e políticas. E nesta ótica será difícil também compreender a insistência na preservação dos arquipélagos culturais da cidade, como uma espécie de redutos de aprendizagens exclusivas e pouco propensos ao estabelecimento de relações cidadãs de interconhecimento. Por exemplo, a adesão à Carta das Cidades Educadoras por muitos municípios portugueses revela mais a irrecusável bondade dos princípios que a sustentam do que, propriamente, uma inflexão no sentido do estreitamento das relações entre as instituições. Enquanto isso, a educação vai permanecendo na intermitência das parcelas e na fluidez das articulações que os indivíduos e alguns grupos promovem particularmente. Se para muitos esta conceção de cidade até propicia um leque de possibilidades de aprendizagens significativas, muito se jogando aqui a ancoragem dos sujeitos em socializações e experiências sociais prévias, para outros, contudo, o acesso a bens culturais comuns apenas se torna possível através da via formal, isto é, pela intermediação da escolaridade universal e obrigatória. As segmentações culturais tornam-se assim inevitáveis, sendo as diferenciações tanto mais efetivas quanto mais os sujeitos se aproximarem da condição de produtores; o que equivale a afirmar que quanto mais o ator contribuir para a desfragmentação dos loci da e na cidade mais contextualizada se torna a sua imersão cultural e, por conseguinte, de maior significado educativo.
Para adensar a teia reflexiva em que nos enredamos, gostaríamos de tomar emprestada a noção de “gaveto” à arquitetura e revesti-la metaforicamente com os dilemas com que os jovens hoje se debatem na sua relação com a cidade. A esquina, o canto, o ângulo de duas ruas ou quarteirões, tem permitido afirmar historicamente a cultura e a identidade da cidade, transformando arestas anódinas em espaços de transição e exposição privilegiados. Os gavetos funcionam, assim, como elementos de referência a um contexto, “como faróis” (nas palavras de Adelino Rodrigues, www.adelinoarq.com.pt) que ajudam a situar o sujeito no mapa cultural da cidade. Porém, a espessura simbólica destes espaços desvanece-se com a ausência de roteiros comunicativos, o que permitiria a construção de oportunidades de aprendizagem e de saberes não insularizados e não descomprometidos com as dinâmicas públicas e da comunidade. O gaveto, para muitos jovens, sobretudo de classes médias urbanas, é sinónimo de um pequeno espaço anexo a uma vivenda construída em banda e que serve, de vez em quanto, para se divertirem com os amigos ou para ser utilizado esporadicamente pela família em barbecues ou aniversários. Sendo um espaço particular, fechado, contido, distingue-se da anterior conceção pública de gaveto, não consubstanciando quaisquer significados culturais, exceto para as relações informais que particularmente nele se tecem. Esta ideia de gaveto será, talvez, aquela que mais se ajusta aquele tipo de jovem que temos em mente nesta reflexão e que vive a cidade de forma compartimentada e culturalmente hierarquizada. E neste sentido, o gaveto como metáfora de locus integrado da cultura comum da cidade, aproxima-se antes de uma visão de gaveta, muito provavelmente a sua raiz etimológica. É certo que não estamos aqui a considerar o papel do jovem como co-construtor de uma cidade virtual e como ator político nos novos fora que a constituem, que em muitas circunstâncias têm permitido a renovação das formas tradicionais de participação social. Mas esta nova realidade não enfraqueceu a hierarquia dos saberes, nem muito menos aproximou as margens do arquipélago cultural da cidade. Em boa verdade diversificou as interações sociais e os fluxos comunicativos, muito embora à custa do acantonamento do sujeito em espaços mais restritivos e menos densos de atividade humana.
A cidade educativa, tal como foi concebida pela UNESCO em 1972, no relatório de Edgar Faure e colaboradores, está hoje mais longe de se realizar. Apesar de sitiada pelos saberes potenciados pela “sociedade informacional” (Castells, 2002), a escola não se desformalizou e muito menos admitiu novas formas de conhecimento ou foi, sequer, abalada na sua estrutura curricular. A escola renovou a sua centralidade, não obstante terem proliferado novas e velhas periferias educativas, muitas das quais intersetando e complementando a matriz educativa da instituição escolar. Sem pretendermos aquilatar o peso do racional escolar nas dinâmicas da cidade, é no entanto evidente que esta instituição exerce uma força radicalizadora na separação das educações, ou se preferirmos, no quadro da ideologia da aprendizagem ao longo da vida, das aprendizagens formais, por um lado, e das aprendizagens não-formais e informais, por outro lado. E também neste sentido se tem vindo a abdicar de uma conceção integrada ou holística da educação, não se podendo, neste diagnóstico, ilibar muitos os cientistas sociais e da educação, seja por caucionarem a tipologia clássica do universo tripartido da educação, seja por não introduzirem uma nova heurística no processo de reflexividade social. Assim, quer por ação das lógicas constitutivas da cultura escolar, quer por força do avanço das ideologias do mercado educacional, quer inclusive pela ação conjugada de ambas, a escola caminha agora para um maior enclausuramento disciplinar, cujo cenário de crise económica e financeira ajudou a operar. Os jovens, cada vez mais enquanto alunos, tenderão a naturalizar esta compartimentação, mais a mais por que no fundo estão habituados a pensar sob a lógica das “gavetas”.
Mesmo que a realidade refute esta última suposição, pelo menos não evitaremos de deixar no ar uma convicção, em grande medida alicerçada na observação continuada que temos efetuado aos mecanismos de produção dos resultados escolares e tendo como pano de fundo o sentido das políticas educativas na escola pública: os alunos vivem os tempos escolares “enGAVEtados”! Não se trata de um erro de digitação, mas tão-somente uma forma de enfatizar o peso que o Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação (GAVE) exerce sobre o quotidiano das escolas, designadamente na regulação do processo de avaliação das aprendizagens. A reintrodução de exames no final dos vários ciclos de escolaridade, do ensino básico ao secundário, tornou as escolas obcecadas na procura de soluções para melhoria dos resultados escolares, um (suposto) requisito sine qua non para a sua própria sobrevivência. Os resultados dos exames adquiriram uma importância na seriação das escolas, no seu financiamento, na manutenção dos postos de trabalho dos docentes e funcionários, entre outras funções no quadro das atuais políticas educativas, que, por vezes, se ignora o seu papel pedagógico e o seu impacto na construção dos percursos escolares dos alunos. Os efeitos perversos desta avaliocracia centralmente fomentada, tende a transformar o processo de ensino-aprendizagem num plano de preparação intensiva para os exames, sempre norteada pela matriz do GAVE, seja na conceção das questões, seja na correspondente grelha de correção. Os múltiplos elementos de avaliação, sobretudo no ensino secundário, vão ao ponto de rotular de insucedido um aluno, mesmo que, avant la lettre, ele saiba a matéria toda. O ajustamento à tecnologia de respostas torna-se, assim, o calcanhar de Aquiles de muitos alunos, problema que normalmente apela a soluções que passam pelo treino e resolução de provas-modelo, pela continuidade do trabalho escolar fora da escola em centros de estudos/explicações, entre outras estratégias mais de estudo intensivo e mecânico e menos de compreensão da educação na sua globalidade.
É claro que perante estes constrangimentos, o enGAVEtamento dos jovens torna problemáticos outros investimentos de natureza cultural. Mesmo aqueles que resistem, fazem-no dentro da provisoriedade imposta pelo pulsar das temporalidades e dos ritmos escolares, cujo escrutínio dos resultados tende a sobrepesar na continuidade em outras atividades não-escolares, mesmo que estas até sejam mais significativas no desenvolvimento das subjetividades. E no fundo tudo seria mais fácil se deixássemos fluir a cultura por entre os contextos educativos da cidade; ou melhor: talvez fosse oportuno abrir as gavetas!