Problematizando a agenda cultural e criativa: novos trilhos de investigação sociológica hoje

Dimensão analítica: Cultura e Artes

Título do artigo: Problematizando a agenda cultural e criativa: novos trilhos de investigação sociológica hoje

Autor: Pedro Quintela

Filiação institucional: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – Centro de Estudos Sociais

E-mail: quintela.pedro@gmail.com / pedroquintela@ces.uc.pt

Palavras-chave: indústrias criativas; economia criativa; trabalho criativo.

As relações entre cultura e economia têm-se transformado profundamente nos últimos anos. O recente debate em torno da importância estratégica que atribuída à “economia criativa”, às “indústrias criativas”, às “classes criativas” e às “cidades criativas” constitui certamente um dos mais significativos movimentos de estreitamento de relações entre cultura e economia, adquirindo uma crescente relevância, nos meios académicos, técnicos e políticos (motivando estudos e relatórios de instituições como a OCDE, a UNCTAD e a Comissão Europeia). Esta nova conceção de “criatividade” representa, em si mesma, um considerável alargamento do campo cultural e artístico. No atual contexto de transformação da economia, que valoriza cada vez mais o “conhecimento”, autores como Richard Florida têm vindo a defender a importância estratégica da dimensão “criativa” em todo o sistema económico, reconhecendo que, a par do conhecimento científico, desempenha um papel central nos processos de inovação. Apesar do relativo consenso que parece existir em torno da importância da criatividade e da relevância económica das indústrias culturais e criativas, subsiste uma intensa polémica sobre diversos aspetos. Destaco a questão do “trabalho criativo”, domínio pouco investigado sociologicamente e relativamente ao qual predominam abordagens macroeconómicas, pouco preocupadas em aprofundar as características, condições e modalidades em que se desenvolve.

Têm sido identificadas nos chamados “profissionais criativos” algumas características que se revelam importantes no contexto do capitalismo contemporâneo: empreendedorismo, aprendizagem pela prática, flexibilidade, inovação. O trabalho intelectual e criativo tem sido, por isso, fortemente valorizado em virtude do seu elevado potencial económico, associado à componente simbólica dos bens e serviços produzidos e à rentabilização da propriedade intelectual, da autoria e da originalidade. Contudo, o trabalho criativo está longe de se revelar uma realidade de fácil tipificação, não sendo igualmente lineares as articulações que, através dele, se tecem entre as esferas cultural e económica.

Na realidade, a definição de trabalho criativo é complexa, apelando a uma problematização baseada na análise sistemática das várias modulações em que se desdobra. Também as condições em que este trabalho se exerce merecem um exame aprofundado. Embora o conceito de “classes criativas” (Florida, 2002 e 2006) seja sugestivo do ponto de vista político e mediático, revela-se ambíguo, pois é incapaz de atender à heterogeneidade de situações dos profissionais considerados “criativos”, bem como ao caráter não linear das suas carreiras. Estudos recentes demonstram importantes diferenças na empregabilidade e nos níveis de reconhecimento profissional entre licenciados em cursos “criativos” e “não-criativos”; evidenciam, simultaneamente, situações contrastantes entre “subgrupos criativos” (Faggian et al, 2012; Comunian et al, 2010; Abreu et al, 2011).

Alguns autores questionam a precariedade laboral em que se desenvolve o trabalho criativo, salientando o pioneirismo do setor na aplicação dos princípios de economia flexível, numa “lógica de projeto” típica do capitalismo contemporâneo. Como defende Rosalind Gill (2002 e 2007), importa refletir sobre os impactos profundos destas formas de organização do mercado de trabalho, questionando a “aura” de coolness associada às indústrias criativas, denunciando a baixa remuneração, a ausência de proteção social e a dificuldade de conciliar a esfera profissional e privada.

Esta questão ganha particular relevância no contexto atual de profunda crise e recessão económica – tempos propícios para um agudizar dos níveis de risco de muitos dos profissionais criativos que, em contexto “de normalidade”, se encontram já em situações bastante vulneráveis. Tara Vinodrai (2012) alerta para a importância da análise das dinâmicas de trabalho criativo considerar as especificidades de cada contexto – não só económicas, mas também sociais, políticas, territoriais e institucionais. A capacidade de adaptação dos profissionais criativos a conjunturas socioeconómicas mais adversas, resistindo e mesmo respondendo de forma proativa, está criticamente dependente das condições específicas do contexto em que se inserem, designadamente, do investimento público e dos apoios sociais existentes.

Também em Portugal se tem assistido ao debate sobre o potencial económico do setor cultural e criativo. Por todo o país proliferam projetos e iniciativas, locais e regionais que, com características diversas, visam estimular o tecido cultural e criativo, frequentemente associando a uma dimensão urbana e/ou patrimonial. Vários municípios têm adotado o “emblema” de cidades criativas, enquadrando-o em estratégias de marketing urbano. Alguns estudos (AA.VV., 2008 e 2010) fundamentam a aposta política no desenvolvimento das indústrias criativas em diversos contextos e escalas territoriais. Contudo, estas pesquisas assumem geralmente características quantitativas, de perfil macroeconómico, centrando-se na caracterização e avaliação dos impactos económicos. Faltam análises de pendor qualitativo que permitam um conhecimento mais denso do setor cultural e criativo e dos seus profissionais, modos de organização, condições de trabalho e características específicas do seu trabalho.

A aposta em análises qualitativas é fundamental para problematizarmos seriamente as conceções homogeneizantes e simplificadoras acerca do trabalho criativo e do seu contributo para o desenvolvimento económico, sociocultural e territorial. Este conhecimento mais aprofundado e crítico acerca do setor cultural e criativo e das condições concretas em que os seus profissionais operam é também crucial para assegurar uma reflexão mais realista e objetiva, acerca da sustentabilidade atual e futura do setor em Portugal.

Referências bibliográficas

AA.VV. (2008), Estudo Macroeconómico para o desenvolvimento de um ‘cluster’ de Indústrias Criativas na Região Norte, Porto: CCDRN.

AA.VV. (2010), O Setor Cultural e Criativo em Portugal, Lisboa: GPEARI/MC.

Abreu, Maria, Faggian, Alessandra, Comunian, Roberta e Mccann, Philip (2011) “Life is short, art is long”: the persistent wage gap between Bohemian and non-Bohemian graduates, in The Annals of Regional Science, pp. 1-17.

Comunian, Roberta, Faggian, Alessandra, Li, Cher (2010), “Unrewarded careers in the creative class: The strange case of Bohemian graduates”, in Papers in Regional Science, Vol. 89, pp. 389-410.

Faggian, Alessandra, Comunian, Roberta, Jewell, Sarah e Kelly, Ursula (2012) “Bohemian graduates in the UK: disciplines and location determinants of creative careers”, in Regions Studies, pp. 1-18.

Florida, Richard (2002), The Rise of the Creative Class, and how it is transforming leisure, community and everyday life, New York: Basic Books.

Florida, Richard (2006), The Flight of the Creative Class, New York: Harper Business.

Gill, Rosalind (2002), “Cool, creative and egalitarian? Exploring gender in project-based new media work in Europe”, in Information, communication and society, 5 (1), pp. 70-89.

Gill, Rosalind (2007), Technobohemians or the New Cybertariat?, Amsterdam: Institute of Network Cultures.

Vinodrai, Tara (2012) “Design in a downturn? Creative work, labour market dynamics and institutions in comparative perspective”, in Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, doi: 10.1093/cjres/rss011, pp. 1-18.

Esta entrada foi publicada em Cultura, Artes e Públicos com as tags , , . ligação permanente.